Peter Selg, Constanza Kaliks,
Justus Wittich, Gerald Häfner
Uma contribuição da diretoria geral do Goetheanum
Sociedade Antroposófica Geral
Tradução de Valdemar W. Setzer
Acesse aqui o texto bilíngue inglês/português, com notas explicativas completas
A questão de como Rudolf Steiner, antropósofos e instituições antroposóficas lidam com questões de racismo e discriminação racial, xenofobia e intolerância, é muito legítima após um século ‘genocida’ e em vista das desigualdades extremas no mundo de hoje. O racismo, a discriminação racial, o desrespeito e, além disso, a exploração e destruição dos meios de subsistência e da vida de outras pessoas. são enormes desafios do nosso tempo presente. Portanto, é importante e correto questionar que posição os antropósofos assumem sobre isso.
No entanto, não se pode ignorar que a questão da posição antroposófica vem sendo levantada publicamente há muitas décadas – e, recentemente, cada vez mais – não por um interesse pelo conhecimento. Frequentemente, ela faz parte de um discurso polêmico, uma difamação de Rudolf Steiner, das instituições antroposóficas e da própria antroposofia. Há muito foi reconhecido que a acusação de racismo é afirmada como um "argumento moralmente irrefutável" (Ballard). Rudolf Steiner, a antroposofia ou as iniciativas antroposóficas tornam-se socialmente estigmatizados e marginalizados ao serem associados ao racismo. Declarações de posições particulares, e uma variedade de artigos, estudos e livros cuidadosamente preparados partindo da perspectiva antroposófica não mudaram essa situação até hoje, nem ganham quase a mesma publicidade e divulgação que as acusações abrangentes.
Tudo isso tem causado considerável frustração, mesmo entre as pessoas que, em princípio, estão interessadas ou são simpatizantes das atividades antroposóficas, bem como entre os membros da própria Sociedade Antroposófica. Diante dessa situação, decidimos escrever uma contribuição que busca abordar a questão geral – fundamentando tanto o conteúdo quanto a estratégia. No que segue, desenvolvemos em esboço, contextos históricos e ideológicos, que nos parecem importantes para a avaliação individual das denúncias que são feitas. Além disso, delineamos as tarefas e desafios da Sociedade Antroposófica e das instituições antroposóficas em um mundo marcado pela injustiça e discriminação. A rejeição resoluta de declarações falsas e insinuações dentro do debate jornalístico é significativa e necessária; entretanto, parece-nos de igual importância o escrutínio autocrítico de nossa própria atitude em relação à extensão da injustiça no mundo, bem como nossa própria contribuição para superá-la. A nosso ver, somente por meio de ambos pode surgir um desenvolvimento em direção ao futuro, também no contexto antroposófico.
1. Humanismo científico-espiritual e a sociedade civil na antroposofia
Rudolf Steiner elaborou as características essenciais de uma ciência do espírito e as introduziu no discurso público. Somos da opinião que a civilização de hoje carece do reconhecimento e da prática de tal ciência e que a abordagem de Steiner tem o potencial de abrir o caminho para a saída do reducionismo prevalente.
A imagem muito particular do ser humano que Rudolf Steiner apresentou ao público e o seu conceito de dignidade humana, e de capacidade humana para o desenvolvimento, parecem-nos de fundamental importância para uma sociedade moderna. Rudolf Steiner desenvolveu um individualismo ético que pode substituir as normas coletivas. Ele descreveu os princípios de novas comunidades sociais e elaborou uma ética global de responsabilidade para com o compartilhamento do meio ambiente da humanidade e do mundo natural. Consideramos essas contribuições de Steiner essenciais para o futuro em perigo da humanidade e da Terra.
Também consideramos como metodologicamente inovadoras e viáveis para o futuro as iniciativas sociopolíticas e da sociedade civil de Steiner, que ele concebeu e tentou implementar com seus colegas de trabalho no primeiro quarto do século XX. Sua defesa sem reservas e, do ponto de vista de hoje, então extraordinariamente futuristas contra o patriotismo e o nacionalismo, contra o racismo e o antissemitismo, contra a eugenia e o darwinismo social, e pela construção de uma sociedade civil democrática, foram delineadas na história de seu trabalho, e seu significado foi publicado nos últimos anos. Após a catástrofe da Primeira Guerra Mundial, Steiner e seus colegas fizeram campanha por um programa de reforma abrangente para a dissociação entre interesses econômicos e políticos de Estado, e os interesses espirituais e esferas da vida - conhecida como ‘trimembração do organismo social' – um conceito e iniciativa que podem ser devidamente avaliados e apreciados hoje com distância histórica. Esse esboço de uma sociedade civil livre, democrática e social não prevaleceu na época mas, em nossa opinião, ainda hoje é extremamente relevante.
A Sociedade Antroposófica estabelecida por Rudolf Steiner e seus colaboradores de 1912 a 1925 também representa um importante experimento modelo na crise da civilização nos séculos XX e XXI. O ambicioso conceito de uma sociedade livre, orientada para o diálogo e socialmente proativa, capaz de atuar em vários países e culturas em todo o mundo, só foi capaz de ser parcialmente implementado na prática. Mesmo assim, muitas pessoas continuam trabalhando intensamente para atingir esse objetivo. De forma semelhante e dentro de seus próprios domínios, isso se aplica ao exemplo da fundação da Escola Waldorf (1919) no sentido de um sistema de ensino livre, as primeiras clínicas antroposóficas (1921) em uma base científica natural e espiritual, a as instituições de pedagogia terapêutica (a partir de 1924) e as fazendas biodinâmicas (a partir de 1924).
A abordagem da antroposofia baseia-se na possibilidade de autoconhecimento, bem como na capacidade de desenvolvimento do ser humano. A capacidade autorreflexiva e também autocrítica de aprender dentro de um movimento social, que nunca se vê completo, é possivelmente um dos motivos pelos quais as iniciativas antroposóficas têm se mostrado, de modo geral, um fator social positivo em várias culturas e situações de vida em todo o mundo, sem a pretensão de perfeição. Eles são imperfeitos – e se entendem como tais.
Um período de teste desafiador para iniciativas e instituições antroposóficas originadas na Alemanha foi o governo de doze anos do nacional-socialismo. O comportamento dos antropósofos durante esse período, que é frequentemente e repetidamente trazido à discussão pública de uma forma muito distorcida, foi largamente pesquisado e seus resultados publicados. Outros trabalhos estão em preparação e serão publicados nos próximos anos.
2. A discussão política sobre a antroposofia na Alemanha
Os anos de formação da antroposofia, no primeiro quarto do século XX, foram marcados por uma polêmica cada vez mais agressiva em torno dela, especialmente no campo do jornalismo. Está documentado em grande detalhe que os ataques contra a antroposofia e contra as instituições antroposóficas após a Primeira Guerra Mundial e até a morte de Rudolf Steiner (30 de março de 1925) vieram principalmente do movimento de direita nacionalista, racista e antissemita, e foram lançados com veemência. O compromisso de Steiner e seus/suas colegas de trabalho para superar o estado-nação e o imperialismo e a hegemonia do estado-nação, o racismo e o antissemitismo, bem como as formas autoritárias de tomada de decisão nas comunidades e sociedades causaram indignação entre os grupos de direita nacionalistas e de grupos de extrema direita. Em particular, o conceito de 'trimembração do organismo social', a fundação da Escola Waldorf e a crítica marcante de Steiner ao antissemitismo (bem como no Mitteilungen aus dem Verein zur Abwehr des Antisemitismus) [revista 'Communicações da Associação para a Defesa contra o Antissemitismo'] resultou em ferozes ataques jornalísticos e até físicos a Steiner. Além disso, os muitos membros judeus da Sociedade Antroposófica Geral, de orientação internacional, e de seus conselhos executivos, representaram uma fonte de contenda. Após a abertura do Goetheanum no outono de 1920, a campanha da imprensa contra o “criminoso nacional” Rudolf Steiner e a antroposofia foi conduzida com militância crescente, proveniente dos primeiros grupos nacional-socialistas organizados. O próprio Adolf Hitler participou pessoalmente do Völkischer Beobachter [Observador Étnico] já em março de 1921.
Quando os nacional-socialistas assumiram o poder político na Alemanha em 30 de janeiro de 1933, a difamação pública da antroposofia intensificou-se mais uma vez. Em novembro de 1935, após longa preparação pelas autoridades nazistas, a Sociedade Antroposófica foi proibida na Alemanha e seus membros foram registrados e monitorados. Os relatórios da SS [Schutzstaffel – Esquadrão de Defesa] e do Reich Security Main Office (RSHA) [Escritório Principal de Segurança do ‘Reich’] mostram em detalhes o quão perigosa e "corrosiva" a antroposofia era considerada – embora o número de antropósofos na Alemanha fosse comparativamente pequeno. A Sociedade Antroposófica tinha cerca de 7.000 membros em 1933.
A maioria das instituições antroposóficas (escolas Waldorf, consultórios médicos, fazendas e lares de crianças) foram capazes de continuar trabalhando por anos depois que os nacional-socialistas tomaram o poder, desde que não se engajassem em oposição política ou defendessem publicamente a antroposofia. As instituições foram toleradas por anos, até porque alguns nacional-socialistas de alto escalão as tinham em alta estima pela qualidade de seu trabalho – apesar da antroposofia. Retrospectivamente, foi apurado que o oficial da SS de alto escalão Otto Ohlendorf, do Escritório Central de Segurança do Reich (RSHA), disse que não estava interessado na destruição de “instituições e pesquisas vivas e construtivas.” Uma vez que o Partido Nacional Socialista ainda não havia conseguido ‘moldar’ seus próprios modelos em várias esferas da vida, ele se sentiu compelido a “explorar” as operações existentes “no interesse da Alemanha” e do nacional-socialismo. Está documentado que as empresas agrícolas da SS, por exemplo aqueles que trabalham no cultivo de plantas, contrataram antropósofos qualificados com conhecimento especializado em agricultura biodinâmica. Tudo isso, porém, não altera o fato de que a antroposofia e o movimento antroposófico foram definitivamente contados pela direção do NSDAP [Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei – Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialista Alemão], da SS e do Estado entre os inimigos do regime e de sua ideologia. Em maio de 1936, um relatório do Serviço de Segurança (SD) da SS afirmava, por exemplo:
“[...] A antroposofia separa o espírito de sua conexão com a raça e o Volk [povo, etnia] e condena o racial e o nacionalista a uma esfera inferior de primitivismo, de instinto e de impulso desde os tempos pré-históricos para ser superado pelo espírito. Assim, prova que está entrelaçada com as principais correntes da história intelectual europeia até hoje, sobretudo o Iluminismo, o idealismo alemão e o liberalismo dos séculos passados.”
Dos anos 1970 e 1980 em diante, autores políticos de esquerda individuais acusaram os antropósofos na Alemanha de terem cooperado amplamente com o regime nazista durante o período nazista devido a afinidades de conteúdo e convergências ideológicas (“ecofascismo”), e tinha sido até um grupo cortejado e privilegiado por líderes nazistas. Os principais pontos de crítica foram a suposta irracionalidade ‘oculta’, a suposta hostilidade ao progresso e à tecnologia por parte da antroposofia, o pensamento supostamente conservador e até reacionário em conceitos de ‘organismo’ e ‘totalidade’ [holismo], bem como um suposto pensamento de ‘elite', que se baseou principalmente na existência de escolas Waldorf ‘privadas’. Isso foi acompanhado pela afirmação de que a compreensão de Rudolf Steiner da sociedade e da imagem do ser humano era inerente a uma defesa da ‘desigualdade’ ou mesmo do ‘racismo’. Além disso, o próprio Steiner tinha sido uma ‘figura principal’ dentro de uma ‘seita’ autoritária, o que implicava uma afinidade com o nacional-socialismo e o fascismo.
Os críticos políticos de direita no primeiro trimestre e os críticos políticos de esquerda desde o último quarto do século 20 na Alemanha, foram tão opostos em suas posições de agressão quanto seus métodos foram semelhantes, como mostra a análise histórica. Ambos os grupos se concentram no próprio Rudolf Steiner e não apenas negam a abordagem científica espiritual ao conhecimento que ele desenvolveu, mas também atacam sua integridade. Eles o acusam de puro ecletismo; na opinião deles, o trabalho cognitivo e de pesquisa independente de Steiner não existia. Ao reivindicar uma mudança radical de um ‘livre pensador ateísta’ para um ‘ocultista teosófico’, o que supostamente aconteceu por razões econômicas, Rudolf Steiner foi, de acordo com eles, biográfica e moralmente desacreditado. De acordo com qualquer que seja o sentimento predominante nesses grupos de críticos, ao usarem citações arbitrárias das palestras de Steiner, fora de contexto, isoladas, não foi e não é difícil para ambos os grupos desacreditá-lo publicamente, sem nunca terem se engajado em um discurso diferenciado, qualitativo e de trabalho histórico.
Os críticos que trabalham desta forma também alcançaram recentemente grande sucesso por meio de ‘gestão de opinião e indignação’ estratégica na mídia e nas redes sociais. A antroposofia é “uma visão de mundo elitista, dogmática, irracional, esotérica, racista e anti-iluminista”, enfatizou uma monografia publicada por uma editora de esquerda na Alemanha em 2019; Steiner era um “antissemita radical” e representava uma ideologia não científica, anticientífica e “desumana”, cuja propagação deve ser evitada. “Qualquer pessoa que defende uma sociedade verdadeiramente livre deve se opor a ela.”
Recentemente, também houve tentativas isoladas de apropriação da antroposofia, posições individuais ou aplicações metodológicas pelo movimento político de direita ‘identário’ ou por simpatizantes do movimento Reichsbürger [Cidadãos do Reich], fato que tem sido convenientemente destacado na mídia, mais uma vez ativando preconceitos estereotipados.
Rudolf Steiner, no entanto, não era um ocultista irracional, nem um ideólogo ‘antimoderno” e ‘anti-iluminista’. Seu trabalho pode ser desconcertante e provocativo para muitos porque desafia de uma forma incomum padrões arraigados de pensamento. Em sua obra, que de fato requer uma atitude especial dos leitores, ele aponta caminhos científicos espirituais originais de conhecimento que, se seguidos metodicamente, podem levar a um aprimoramento da compreensão da ciência e da prática da vida, o que nos parece urgentemente necessário. A crise da cultura, da ciência, da sociedade e da civilização que vivenciamos atualmente é de considerável magnitude. Os resultados do trabalho de Rudolf Steiner e os métodos de cognição – aos quais queremos nos conectar e avançar de maneira produtiva – são, em nossa opinião, parte da solução, não parte do problema. Eles estão a serviço do esclarecimento e da liberdade, da humanidade, da justiça social e da vida – e são polarmente opostos a todos os pensamentos e sentimentos nacionalistas, racistas e de extrema direita.
3. Difusão mundial e intercultural da antroposofia
As discussões sobre a antroposofia começaram na Alemanha e foram conduzidas de forma mais intensa e militante por lá por muitos anos. Como as palestras e escritos impressos de Steiner apareceram por muito tempo em Berlim, a Alemanha tornou-se o ponto de partida histórico de sua iniciativa. Em sua abordagem, entretanto, a ciência espiritual antroposófica é universal e voltada para o ser humano; com essa abordagem cosmopolita, há cem anos ela tem aparecido internacionalmente em vários ambientes linguísticos, culturais e religiosos. Mesmo durante a vida de Rudolf Steiner, havia grupos de pessoas em muitos países europeus, e tão distantes como as Américas do Norte e do Sul, que estavam engajados na antroposofia e traduziram obras antroposóficas em suas respectivas línguas nacionais. O próprio Rudolf Steiner falou para pessoas em contextos muito diferentes – tanto em oficinas para trabalhadores quanto em universidades ou em círculos espiritualmente interessados. Steiner viajou constantemente e para muitos países. Sociedades nacionais antroposóficas foram fundadas na Áustria e na Suécia em 1913 e depois, de 1920 até 1924, na Suíça, Dinamarca, Finlândia, Noruega, Grã-Bretanha, França e Itália, bem como na então Tchecoslováquia. Apenas seis anos após a fundação da primeira Escola Waldorf em Stuttgart em 1919, mais sete escolas foram estabelecidas - na Suíça, Grã-Bretanha e Holanda.
Depois que os nacional-socialistas chegaram ao poder na Alemanha no início de 1933, começou uma emigração de antropósofos ativos, especialmente – mas de forma alguma exclusivamente – pessoas de origem judaica, que trouxeram a antroposofia e suas aplicações práticas a muitas áreas do então mundo livre. Ao final da Segunda Guerra Mundial, já havia 30 escolas Waldorf de vários tamanhos fora da Alemanha, em lugares tão distantes quanto Indonésia, Buenos Aires e New York. Hoje, existem 1.187 escolas em todo o mundo. O pediatra e curador judeu refugiado Karl König fundou as instituições Camphill na Escócia durante os anos da guerra, que em 1948 tinham mais de 180 crianças e jovens de vários países sob seus cuidados (incluindo as ex-colônias britânicas da África do Sul, Índia, Quênia e Ceilão). Hoje, existem sociedades antroposóficas em 35 países, bem como grupos de trabalho e instituições antroposóficas em mais de 70 países. A abordagem antropológico-humanista da antroposofia e consistentemente antirracista também está provando seu valor em escolas em regiões muito pobres do Brasil, em escolas urbanas em townships [favelas] na África do Sul, em escolas interculturais e interreligiosas em Israel e também no trabalho voluntário de jovens em todo o mundo. No outono de 1920, Rudolf Steiner já queria fundar uma ‘Associação Mundial de Escolas’ para apoiar e financiar o ensino gratuito em todos os continentes; em 1923 na Inglaterra, ele disse: “[...] Os impulsos educacionais e didáticos que nascem do conhecimento real do ser humano são universalmente humanos, internacionais e para todas as classes, para todas as castas da humanidade.” Sete décadas depois, em 1994, a UNESCO certificou o ‘Waldorf Education Seminar’ [Seminário de Pedagogia Waldorf] na África do Sul após o fim do regime do apartheid como tendo contribuído “particularmente para a cura e reconstrução após o legado racista.” No relatório da UNESCO consta: “O sistema de apartheid da África do Sul foi muito bem-sucedido em manter as diferentes comunidades separadas em termos reais. O Novalis Institute [for Waldorf Education] [Instituto Novalis (de Pedagogia Waldorf)] teve muito sucesso em realmente aproximar essas comunidades e construir uma nova realidade e uma nova consciência. [...] Foi pioneiro e lançou as bases para uma comunidade nova e integrada.” A Pedagogia Antroposófica de Emergência, que fornece ajuda emergencial para crianças em situações de crise, também recebeu grande reconhecimento internacional nos últimos anos.
A antroposofia, com sua abordagem da liberdade, seu individualismo ético e trabalho em muitas esferas da vida foram suprimidos e proibidos em todos os estados comunistas, fascistas ou totalitários, por exemplo em todo o bloco do Leste europeu até a década de 1990.
4. A acusação de racismo contra Rudolf Steiner
Nesse contexto, uma acusação de racismo contra a ciência espiritual antroposófica e contra Rudolf Steiner em pessoa e em sua obra parece mais do que bizarra.
As discussões sobre a definição da palavra racismo continuam. Como a UNESCO enfatizou em 2003, “O racismo é uma construção ideológica que atribui uma determinada raça ou grupo étnico a uma posição de poder sobre outros com base em atributos físicos e culturais, bem como riqueza econômica, envolvendo relações hierárquicas onde a raça ‘superior’ exerce dominação e controle sobre outras pessoas. Além disso, o pensamento racista reivindica um determinismo biológico ou genético, uma classificação biológica ou agrupamento tipológico de seres humanos que sustenta um significado diferente ou mesmo uma superioridade absoluta de ‘raças’ individuais (ou mesmo apenas uma ‘raça’). Segundo essa doutrina, a biologia determina o ser humano como um todo; é lhe negada qualquer possibilidade de transcender individualmente sua estrutura e situação biológicas.
Tal abordagem não é apenas estranha à antropologia de Rudolf Steiner; na verdade, é diametralmente oposta a ela. Steiner descreveu consistentemente – desde seus primeiros escritos até seus últimos trabalhos – o princípio da individualidade autônoma e autodirigida, de um 'eu' que se incorpora em várias circunstâncias biológicas, culturais e sociais, mas se distingue dessa realidade quanto à sua entidade espiritual. Nós nascemos nelas, nos socializamos nelas, frequentemente nos identificamos com elas – ou somos identificados com elas – e ainda assim não somos unos com elas. Não temos apenas um corpo, embora de certa forma também sintamos que somos este corpo, ‘meu corpo’. Não temos graus ilimitados de liberdade, mas podemos nos libertar em grande parte dos parâmetros biológicos, culturais e sociais e das condições gerais em que nos encontramos; podemos transcendê-los e transformá-los. Nós, como eu-humanos e seres de liberdade, somos capazes disso, pelo menos em princípio. “Determinar o indivíduo de acordo com as leis da espécie cessa onde começa a esfera da liberdade (no pensar e no agir).” escreveu Rudolf Steiner em sua A Filosofia da Liberdade em 1893. “Se quisermos entender o indivíduo único, devemos encontrar nosso caminho para dentro de seu próprio ser particular e não nos deter nas características que são típicas.”
Steiner opôs-se fortemente a qualquer determinismo biológico ou genético; ele foi um dos pioneiros da epigenética de hoje e considerou a fixação nas pessoas com base em suas origens físicas, étnicas ou culturais uma recaída desastrosa no desenvolvimento da humanidade, da consciência e da civilização. Steiner escreveu em 1910 em um livro que era imperativo superar o sempre persistente “fazer distinções dos seres humanos de acordo com suas características externas de posição, gênero, raça e assim por diante”. Ele nunca negou a existência de circunstâncias individuais e condições de vida; no entanto, ele não os considerou como parte da ‘essência do ser humano’, mas sim como parte das condições do destino “em que um ser humano vive na terra”. Até a velha “ideia de raça deixa de ter sentido, principalmente na nossa época”, enfatizou Steiner em 1909.
Ele nunca se cansou de descrever a reativação de uma tipificação biológica ou étnica e a avaliação das pessoas como uma aberração perigosa e retrógada em um século que devia representar a liberdade, pelo encontro de 'eu e você', pela conexão entre as pessoas e nações, para interação e cooperação cultural. Em 1917, três anos após o início da Primeira Guerra Mundial de influência nacionalista, ele realmente disse em uma palestra:
“… qualquer um que fala hoje dos ideais de raça e nação e de unidade tribal está falando de impulsos que fazem parte do declínio da humanidade. Se alguém agora os considera ideais progressistas para apresentar à humanidade, eles falam inverdades. Nada é mais projetado para levar a humanidade ao seu declínio do que a propagação de ideais de raça, nacionalidade e sangue.” No final de 1937, em um relatório de avaliação sobre a antroposofia, o Prof. Dr. Alfred Baeumler, o principal pedagogo político do regime nazista, escreveu que o pensamento de Steiner e os fundamentos ideológicos da educação Waldorf não eram “biologicamente raciais”, mas “biologicamente cósmicos”. De acordo com o Prof. Baeumler, Rudolf Steiner coloca a humanidade no lugar do Volk [povo] no Nacional-Socialismo; o “conceito de comunidade nacional” está completamente ausente da teoria educacional das escolas Waldorf. Não é a ‘comunidade do povo’, mas uma ‘comunidade de espíritos [individuais]” para a qual Steiner anseia e prepara:
“... O ponto decisivo da virada ocorre pelo fato de que Steiner substitui a teoria da hereditariedade por uma teoria diferente e positiva. Ele não simplesmente ignora a realidade biológica, mas, sim, conscientemente a transforma em seu oposto. A antroposofia é um dos sistemas antibiológicos mais consequentes que existem.” (Prof. Dr. Alfred Baeumler.)
Acusar no início do século XXI um filósofo e escritor, um humanista ativo e cosmopolita como Steiner – de que o ‘pensamento racial” era um ‘componente central’ em seu ensinamento, que ele ‘implicitamente’ aprovava o genocídio, que ele ensinava a supremacia da raça branca europeia, ligando ‘normalidade’ e ‘espiritualidade’ com ‘ser branco’ e que ele tinha até um ‘modelo fascista’ em mente com sua trimembração social – parece absolutamente bizarro. Rudolf Steiner concordava plenamente que existem diferenças nas circunstâncias biológicas, étnicas e culturais na vida e no desenvolvimento das pessoas. Ele não acreditava em ignorá-los ou nivelá-los deliberadamente (no sentido de uma postulada “unidade de todos os humanos, independentemente de raça, nação ou cor e assim por diante”). No entanto, ele sempre representou a relatividade da alteridade dos outros, a diferença como uma contribuição complementar para o todo humano e a dignidade da identidade própria [self] única, o ‘eu’.
O pensamento racista era tão estranho para Steiner quanto o pensamento imperialista, colonial e hegemônico. Ao contrário de críticos como Staudenmeier, o Nacional Socialista Baeumler corretamente viu que Steiner não estava de todo preocupado com a ‘raça branca’ ou ‘nação’, com ‘arianismo’ e ‘germanidade’, mas com a formação de uma ética individual, social e global para uma futura comunidade mundial. O conceito de ‘humanidade’, o conceito universal de ‘ser humano’, a ‘natureza comum da humanidade’ não era apenas um clichê para Rudolf Steiner. Ele enfatizou repetidamente que as tarefas globais do século XX só poderiam ser enfrentadas e resolvidas coletivamente – na comunidade das nações ou na comunidade mundial, com ajuda e apoio mútuos – o que, no entanto, pressupunha a superação de todos os preconceitos e restrições raciais, culturais, nacionais ou religiosos. Num futuro próximo, apenas “se cada indivíduo estiver em uma base de igualdade com todos os outros indivíduos”, como de um ‘eu’ para outro ‘eu’ em liberdade - "Tu és próximo [amigo humano] com todos os seres humanos da Terra!” – a humanidade seria capaz de sobreviver na Terra, mas de forma alguma por meio de uma continuação do pensamento e ação nacional ou mesmo racista. (“O nacionalismo é o egoísmo comum experimentado por toda a nação.”)
Por meio do conhecimento aprofundado de sua obra, fica evidente que Rudolf Steiner via principalmente na antropologia altamente diferenciada da ciência espiritual, também como a base para uma nova educação e formação, um instrumento para uma compreensão mais profunda do outro ser humano, do seu ‘eu’ e das suas condições culturais, étnicas, familiares, sociais e qualquer outra condição de sua origem. Ele concentrou-se na tolerância e no reconhecimento positivo do outro – como com todos os outros – por meio de maior perspicácia [insight] e conhecimento. “A Ciência Espiritual, como perceberemos cada vez mais claramente, acabará com as divisões da humanidade.”
O objetivo de Steiner era, sem dúvida, ambicioso; inegavelmente, ele viu a Sociedade Antroposófica e suas instituições práticas desempenharem um papel pioneiro e inovador nessa direção. Ele também acreditava que a trimembração social teria sucesso algum dia e que seria de fato possível acabar com o entrelaçamento de interesses e forças econômicas, político-estatais e espirituais-culturais, em favor da criação de uma governança autônoma das três diferentes esferas da vida social. Tudo deve ser feito para acabar com o emaranhado da esfera econômica com a esfera político-democrática, e ambas destituídas do poder de exercer influência e autoridade sobre a esfera espiritual-cultural, incluindo o sistema educacional. Steiner enfatizou a igualdade absoluta de direitos para todos os seres humanos perante a lei na esfera político-democrática, e o reconhecimento de diferentes talentos, habilidades e funções (no sentido da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, Art. 1°: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”). A liberdade deve determinar a vida espiritual/intelectual, a igualdade a vida política político-democrática e a solidariedade deve servir à esfera de uma ‘economia de fraternidade’ completamente nova, que não deve mais servir ao egoísmo privado e ao capitalismo destrutivo.
Embora os conceitos desenvolvidos por Rudolf Steiner e as instituições antroposóficas tenham essa clara orientação, os críticos persistiram com a denúncia de racismo no final do século XX, obtendo, com isso, grande atenção do público. Na década de 1990, a Sociedade Antroposófica Geral da Holanda encarregou um comitê liderado pelo advogado e especialista em direitos humanos Ted van Baarda de examinar criticamente as obras completas de Rudolf Steiner no que diz respeito à acusação de racismo. A comissão chegou a uma conclusão negativa. De acordo com o relatório da comissão, a obra monumental de Rudolf Steiner contém um total de dezesseis citações que, por si mesmas, teriam de ser descritas como discriminatórias do ponto de vista de hoje (principalmente dentre as chamadas 'Palestras para os Trabalhadores', que eram oficinas para artesãos não antroposóficos no Goetheanum, cujas perguntas Rudolf Steiner respondeu espontaneamente). De acordo com o relatório da comissão, “o trabalho de Steiner não contém nenhum racismo ou uma doutrina sistemática de raça, nem existem quaisquer declarações feitas com a intenção de insultar pessoas ou grupos de pessoas por causa de sua filiação racial, o que poderia, portanto, ser considerado racismo”. Todo o assunto é de pouca relevância no trabalho de Steiner:
“... proporcionalmente e em termos de conteúdo, a atenção que Rudolf Steiner devotou ao tema da raça em sua extensa obra é tão pequena que a existência de uma doutrina racial não pode ser considerada, mesmo que apenas por esse motivo."
O relatório também comenta sobre a percepção ‘seletiva’ deste aspecto menor de seu trabalho para o público holandês, e sobre os problemas metodológicos e éticos de usar citações isoladas fora de seu contexto. No resumo, diz:
“O número de páginas em que ocorrem declarações que poderiam ser consideradas discriminatórias compreende menos de uma por mil das 89.000 páginas das extensas obras completas de Rudolf Steiner. A antroposofia e o darwinismo social se contradizem. As insinuações de que o racismo é inerente à antroposofia ou de que Steiner foi um precursor conceitual do Holocausto mostraram-se categoricamente incorretas. A Comissão chega à firme conclusão de que Rudolf Steiner foi vítima de indignação seletiva em comparação com outros autores do pré-guerra e autores dos séculos XIX e XX (como Hegel ou Albert Schweitzer).”
No entanto, como as acusações não cessaram apesar do relatório desta comissão, mas sim, as críticas tornaram-se ainda mais contundentes no início do século XXI, o filósofo e antropósofo inglês Robert Rose apresentou um extenso estudo intitulado Transforming Criticisms of Antroposophy and Waldorf Education - Evolution , Race and the Quest for Global Ethics [Críticas transformadoras da antroposofia, e da Pedagogia Waldorf – evolução, raça e a busca por uma ética global] em 2013. Foi publicado como um e-book e em alemão pela Berliner Wissenschaftsverlag [Editora Científica de Berlim] em 2016. Neste trabalho, Rose conseguiu, entre outras coisas, mostrar convincentemente que as poucas frases da abrangente obra de Rudolf Steiner do final do século XIX e início do século XX, problemáticas do ponto de vista de hoje e criticadas pela Comissão Holandesa, originaram-se de palestras nas quais Steiner descreveu de forma tipológica, a gênese dos ancestrais da humanidade. Naquela época ancestral, Steiner argumentava que o conceito de ‘raça’ ainda tinha significado e justificativa porque as influências geográficas das forças terrenas na estrutura organizacional humana (o ‘corpo físico’) eram extraordinariamente fortes e que o ‘eu’ humano, como essência individual do ser, mal tinha sido formado naquela época. Robert Rose mostrou que as declarações de Steiner, que devem ser entendidas em termos biológicos-evolutivos, não foram apenas repetidamente descontextualizadas, mas foram deliberadamente transpostas para contextos completamente diferentes pelos críticos. Seu “esclarecimento meticuloso do real significado de afirmações individuais, que podem, à primeira vista, parecer muito problemáticas” – e foram engendradas pelos críticos como sendo afirmações fundamentais de Steiner, como se ele estivesse se referindo a pessoas nascidas hoje (!) em continentes não europeus e na suposta unilateralidade dessas pessoas – constituiu uma importante contribuição para a literatura secundária antroposófica nesse mais complexo dos tópicos.
Diante da contínua pressão pública, o Conselho Executivo da Sociedade Antroposófica da Alemanha decidiu recentemente partir para o espaço público com um site dedicado ao assunto (Antroposofia. Sobre a crítica ao racismo e ao antissemitismo. Informações, esclarecimentos, declarações.). O plano é coletar passagens problemáticas das obras completas de Rudolf Steiner e torná-las acessíveis com comentários. No entanto, passagens do trabalho de Rudolf Steiner nas quais ele se pronunciou resolutamente contra o racismo e a discriminação também serão documentadas, bem como declarações de organizações antroposóficas e autores individuais sobre as acusações de racismo e discriminação. Apoiamos esses esforços, pois acreditamos ser importante receber o trabalho da vida de Rudolf Steiner de forma informada, livre e ativa, levando em consideração o contexto das afirmações particulares, bem como a complexidade da representação antroposófica do ser humano. Como declarações descontextualizadas, as sentenças classificadas como problemáticas pela Comissão holandesa – bem como algumas outras declarações parciais isoladas – devem ser rejeitadas; dessa forma, elas não correspondem nem à nossa visão, nem à atitude básica de Rudolf Steiner e aos fundamentos de seus conceitos antropológicos e éticos.
Uma vez que mesmo os críticos agressivos da antroposofia, quer gostem ou não, tiveram que notar como Steiner defendeu radical e inequivocamente o individualismo ético e contra todas as formas de nacionalismo, racismo e antissemitismo de 1894 a 1925, e ao mesmo tempo mantiveram seus maciços ataques, eles falam de um ‘legado contraditório’, sem se aprofundar no que realmente importava a Rudolf Steiner.
5. O potencial de desenvolvimento da Sociedade Antroposófica
Até mesmo o que Rudolf Steiner pretendia com a Sociedade Antroposófica, só pode ser encontrado em formas distorcidas entre alguns críticos. Segundo eles, a sociedade é uma estrutura de poder autoritária e centrada em Steiner, de um movimento concebido hegemonicamente. Também aqui as acusações erram o alvo, de fato transformando a realidade no seu oposto. No entanto, após 100 anos, a crítica também pode ser aproveitada como uma oportunidade para fazer uma avaliação autocrítica.
Se a Sociedade Antroposófica tivesse realmente seguido as propostas de Rudolf Steiner ao pé da letra, teria estado muito mais claramente envolvida em atividades sociopolíticas e ativamente envolvida em eventos atuais muito antes de 1914 e definitivamente após 1918/19 do que antes. A iniciativa para a trimembração social só foi seguida ou mesmo ativamente apoiada por uma fração dos membros da sociedade – e assim foi com vários outros impulsos cívicos que emanaram de Steiner e um núcleo menor de seus colegas. Por muito tempo, o engajamento crítico com as questões sociopolíticas atuais ocupou muito pouco espaço na Sociedade Antroposófica. Desde o início, a Sociedade tendeu a ter uma forte orientação interna, como uma comunidade de estudos essencialmente espiritual que não se preocupava muito com os problemas prementes da civilização e dos desafios sociais, porque não os considerava entre suas tarefas centrais. Além disso, havia deficiências óbvias no tratamento independente, ou seja, uma receptividade criativa, livre e individualizada da ciência espiritual antroposófica, que incluía uma tendência para uma falsa 'adoração de Steiner', bem como uma preocupação desproporcional com problemas sociais internos às custas de uma presença na sociedade civil. Pode-se demonstrar que todos esses fenômenos já existiam antes de 1925 e eram considerados por Rudolf Steiner entre os fardos mais pesados da Sociedade Antroposófica, o que impedia muito a antroposofia de se efetivar na sociedade civil e na sociopolítica. Também é bem conhecido que Steiner nunca reivindicou infalibilidade para si mesmo e seu trabalho de pesquisa. Também votou decididamente contra a transcrição de muitas de suas palestras, inclusive das Palestras para os Trabalhadores no Goetheanum. Ele se envolveu com seus ouvintes nessas palestras tipo oficina, falando em forma de conversa. Ele não era de forma alguma da opinião de que todas essas formulações espontâneas deviam ser preservadas para a posteridade e declaradas em sua totalidade como parte de seus resultados de pesquisa científica espiritual, para serem equiparadas a seus trabalhos científicos. Ele não queria ser reverenciado, mas compreendido, inclusive em sua maneira narrativa e nas idiossincrasias de suas descrições.
No entanto, Rudolf Steiner nunca rompeu com a Sociedade Antroposófica, mas trabalhou até o fim em sua transformação inovadora e possível forma futura; ele também sempre apreciou o compromisso e o idealismo prático de seus membros. Olhando para trás ao longo do século, não há dúvidas sobre o que tem sido alcançado pelos membros da sociedade até os dias atuais, incluindo a construção de formas sociais integradoras e ecológicas nas várias áreas da vida e em todos os continentes, o desenvolvimento de iniciativas comprometidas com a dignidade do ser humano e da criação, e a tomada de medidas contra a discriminação e a desigualdade social, apesar das circunstâncias difíceis e dos enormes obstáculos. Além disso, mesmo durante o período de proibição e perseguição parcial, a Sociedade Antroposófica como tal manteve seu trabalho espiritual e coesão social. Manteve o Goetheanum e sua Escola de Ciência Espiritual vivos em todas as crises políticas e econômicas, por meio do enorme comprometimento pessoal de seus membros. Impulsos importantes para a mudança nas áreas da civilização em perigo – da medicina à agricultura – emanaram das seções especializadas da Escola. A Escola de Ciência Espiritual possibilita o trabalho em rede e o desenvolvimento profissional para as vocações antroposóficas engajadas em todos os continentes e constitui um local de iniciativa e incentivo para a eficácia social. A sociedade mundial antroposófica está tendo cada vez mais sucesso no desenvolvimento de formas culturais e linguísticas independentes para lidar com a antroposofia, adequadas à situação regional e à superação de seu centrismo alemão e europeu inicial, exemplificado pelo grande crescimento das instituições antroposóficas na América do Sul, Israel e Sudeste Asiático. O caráter burguês da classe média alta inerente ao início das sociedades teosóficas e antroposóficas foi gradualmente superado pelo compromisso social, uma cultura intensa e direta de engajamento, um desmantelamento das estruturas hierárquicas e um envolvimento ativo com as crises civilizacionais do presente .
No entanto, grandes dificuldades e desafios, sem dúvida, continuam existindo em todas essas áreas. As graves disparidades econômicas na realidade da vida das pessoas também se refletem na Sociedade Antroposófica. As instituições antroposóficas ainda estão muito longe do objetivo de fornecer novas formas de educação, medicina e agricultura – pelo menos potencialmente – para todas as pessoas neste planeta. Como se sabe, a Escola Waldorf começou em 1919 como uma escola para os filhos dos trabalhadores de uma fábrica de cigarros e, como tal, era uma oportunidade de apoiar aqueles que não eram de origens privilegiadas.
A Sociedade Antroposófica continua a se direcionar para objetivos mundiais que têm sido inerentes a ela desde sua fundação. A história da Sociedade Antroposófica e do Goetheanum não é uma história de puro sucesso e não oferece motivo para auto engrandecimento e idealização. As aspirações com que esta Sociedade e sua Escola de Ciência Espiritual começaram eram altas e a discrepância entre o ideal e a realidade é clara. No entanto, pode ser uma tarefa e uma motivação para viver cada vez mais de acordo com essas aspirações. Rudolf Steiner enfatizou que a Sociedade Antroposófica deve tentar ‘cumprir’ o que promete para todos os seus membros e, portanto, para o mundo. Do nosso ponto de vista, além de análises críticas de sua própria história social – como parte da história contemporânea – e como um compromisso com o tempo presente, isso inclui também fazer esforços intensivos em direção à própria ciência espiritual antroposófica, sua substância espiritual interior. As citações de Rudolf Steiner podem ser usadas e abusadas para todos os tipos de propósitos – para desacreditar a antroposofia e as instituições antroposóficas, mas também para apoiar e supostamente legitimar as próprias opiniões. A exploração de declarações ou passagens singulares dos textos de Steiner por críticos e seguidores da antroposofia – com convicções políticas difusas e uma variedade de outras – tem uma longa tradição. Uma das tarefas da Escola de Ciência Espiritual é apresentar trabalhos para recepção diferenciada da obra e cuidar das camadas hermenêuticas de abordagem da ciência espiritual antroposófica.
Membros da diretoria do Goetheanum com outros grupos organizacionais e vozes do movimento antroposófico, continuarão a se manifestar no futuro com contribuições e declarações, e irão se opor às tentativas de explorar e alienar a antroposofia (inclusive para fins racistas), bem como a difamação da ciência espiritual. “O que a ciência espiritual antroposófica, cuja meta são os conhecimentos do âmbito suprassensível, é o amor humano que nos fala do valor humano e nos permite sentir a dignidade humana” (Rudolf Steiner, 5 de setembro de 1921 [do original em alemão])