Noções Básicas de Antroposofia
Rudolf Lanz
Rudolf Lanz
Com muita razão, o nosso século é chamado de século da ciência e da técnica. Nunca antes tantos esforços e tanta inteligência foram consagrados ao conhecimento e ao domínio da natureza e das forças naturais. Nunca antes o homem teve em suas mãos tanto poderio e tantos instrumentos para multiplicar as suas próprias forças.
Apesar disso, o homem sofre - também como nunca antes - da profunda preocupação que lhe causam as dúvidas e o medo, a frustração e o desespero; em uma palavra, o fato de nem a ciência nem a técnica terem sabido dar respostas às grandes perguntas eternas: Quem sou? De onde venho? Aonde vou? Qual é o sentido da minha vida?
Toda ciência nasceu da curiosidade, do encontro com fatos inexplicáveis. As nossas ciências souberam explicar inúmeros fatos, dando ao homem um profundo saber das coisas ao seu redor. Mas cada vez que ele volta a fazer as perguntas eternas, as respostas, ao invés de parecerem próximas e tangíveis, escapam-lhe sempre mais. Profundamente desambientado, o homem se esforça para esquecer, para furtar-se às dúvidas que o assediam. Mas, quanto mais ele procura recalcá-las, mais intensas vivem elas em seu subconsciente, emergindo de vez em quando, com redobrada insistência.
As perguntas não param aí. Transcendendo a sua própria individualidade, o homem especula sobre o destino da humanidade. Surge o problema da evolução e, com ele, o da criação e da morte. Voltando a si próprio, ele procura em vão uma explicação para a essência da sua própria personalidade, dos valores espirituais. A filosofia moderna ensina-lhe que a "realidade" e a "verdade" são outras tantas ilusões. Tudo é relativo, incerto, incognoscível. A moral e os impulsos sociais perdem seus fundamentos.
Tudo isso não fica no domínio da teoria e da especulação. Ao redor de si o homem vê o caos social, a impossibilidade de harmonizar o campo econômico, de disciplinar a política. Desmoronam-se os velhos pilares da vida em comum: família, autoridade, matrimônio, educação, religião, governo, etc., e uma juventude sem ideais, desiludida, "transviada", apresenta contas à geração dos seus pais, que lhe deixou tal herança.
De onde vem essa situação caótica?
As velhas religiões não souberam resistir ao impacto do racionalismo (Voltaire, Diderot) e da ciência (Darwin, Haeckel, Huxley, etc.). As respostas dadas pelas religiões às "perguntas eternas" deixaram de ter seu valor e sua força. O homem moderno não quer fé nem crença; ele procura fatos e certezas.
A filosofia desde há muito tem perdido o contacto com a realidade humana e social. Os seus maravilhosos sistemas do passado não falavam ao coração do homem. Seus ideais e seus edifícios espirituais, sublimes obras de alguns gênios privilegiados, constituíam torres de marfim cuja aparente irrealidade contrastava vivamente com o império das ciências que passaram a revolucionar o pensamento do homem, desde as suas tímidas manifestações no fim da Idade Média.
Começou então a era das ciências. Quanto orgulho encontramos na famosa resposta do astrônomo Laplace ao Imperador Napoleão, ao qual expusera a sua teoria cosmogônica, e que lhe perguntou onde havia nesse sistema um lugar para Deus: "Sire, je n'ai pas bésoin de cette hypothèse". Mas a ciência trilhou um caminha que também a afastou gradativamente da "realidade". Reduzindo todas as qualidades a quantidades, exprimindo fenômenos sensíveis e "reais" por leis e números, ela satisfez o pendor do homem de procurar compreender racionalmente o mundo; mas esse mesmo mundo ficou privado das suas "qualidades" que apelam aos sentidos e aos sentimentos.
Vejamos a hipótese grotesca de um indivíduo que consulta os catedráticos (hoje "professores titulares") de uma universidade sobre o que lhe parece serem os mais altos valores humanos: as obras de arte, os ideais da religião e da moral.
O antropólogo ou sociólogo lhe explicará que se trata de manifestações da psique, de projeções e sublimações de caráter anímico. Consultando em seguida o psicólogo sobre o que seria essa psique, essa alma do homem, o nosso estudioso aprenderá que a "alma", se é que existe, é condicionada por fatores fisiológicos como a libido, ou por substâncias biológicas como os hormônios, etc. Depressa o nosso curioso correrá ao catedrático de biologia para saber algo mais sobre a vida e suas manifestações. Este, conhecendo as últimas descobertas da bioquímica, responderá: "A vida é um conjunto de estados e funções de certos agrupamentos moleculares, de forma e estrutura definidas (ácido desoxiribonucléico, etc). A vida e suas manifestações? Uma série de reações químicas de substâncias simples, conhecidíssimas! Próximo ao desespero, o nosso homem irá ver o professor de química, se for honesto, lhe dirá: "Meu caro amigo, eu lhe posso descrever as propriedades dos elementos, mas na realidade não sei o que é a matéria. Vá ver o meu colega do departamento de física atômica". E, se não perdeu todas as esperanças, o nosso amigo as perderá desta vez. Com efeito, sua pergunta "o que é a matéria" merecerá apenas um sorriso irônico: "A matéria não existe. Ela é uma hipótese de trabalho. Tudo se reduz a partículas que podem ter características de massa, ou de carga elétrica, e de velocidade; mas na realidade não se trata bem de corpúsculos - nós inventamos essa imagem para maior comodidade, mas na realidade, não sabemos nada. Tudo se passa de acordo com certas fórmulas matemáticas, que contém até elementos sem significado para nossos sentidos". Mas esse "tudo" . . . "é nada".
E se o essa pessoa insistir, aprenderá ainda que o tempo é relativo, que o espaço (que ele imaginava como uma espécie de meio vazio no qual se encontram os objetos) é curvo e finito, embora ilimitado, e que a lei do determinismo (casualidade), base de todos os seus raciocínios anteriores, não é válida no reino de fenômenos muito pequenos (fótons, por ex.), constituindo no mundo "tangível" apenas uma lei estatística. Finalmente, ele saberá que no domínio do infinitamente pequeno a observação "objetiva" é impossível, porque o observador, pelo próprio fato de observar com os instrumentos apropriados, falseia os resultados observados . . .
E daí?
Estamos vendo que a própria ciência leva a um absurdo! Ela própria, que pretendia dar a certeza e descobrir a "verdade", destrói a realidade. Tudo reduzido a corpúsculos e fórmulas: eis o mundo na interpretação da ciência de hoje. Não resta a menor base para valores éticos ou para impulsos espitituais.
Como sair desse beco sem saída?
Existem correntes na ciência moderna que admitem ou antes, postulam, certos princípios extra físicos. A própria física atômica chega a esse extremo (Heisenberg, Einstein), a biologia o faz (teorias gestaltistas, Portmann), mas sempre reconhecendo que chegamos a um limite que a ciência não pode transpor. A ciência atual tem, portanto, que confessar a sua incapacidade, pois admite componentes que não podem ser captados pela observação nem pelo raciocínio.
Mas o homem não se dá por satisfeito. Ele sabe que "ele é!" Ele sabe que está aí, pensando, duvidando, sofrendo. Tem a certeza de que há nele algo mais do que corpúsculos e forças físicas. Ele tem a intuição de um fato espiritual: o eu, a Nona Sinfonia, a Divina Comédia, são para ele realidades. Cada pensamento é uma realidade, cada ato de amor ou ódio é algo de palpável, e o teorema de Pitágoras lhe parece, em sua abstração, pelo menos tão correto como os corpúsculos e elétrons da física atômica.
Existe, pois, para ele, uma realidade mais ampla, que contém aspectos físicos e não físicos. O mundo é explicado pelas ciências, nas, como já vimos, estas chegam a limites intransponíveis. E a parte não-física, que o homem experimenta e vivencia como um dado imediato de sua consciência? Ele não se dá por satisfeito pela simples crença nesse domínio inabordável, pela fé naquilo que alguma religião lhe transmitiu como "revelação". Pois o homem moderno quer saber. Quer conhecer. Ele sabe que a sua dignidade de homem estará em jogo se não aspirar a esse conhecimento. Daí as suas perguntas eternas! Ele quer entrar conscientemente nesse reino fechado e aparentemente proibido para sempre.
Mas como? Quais as possibilidades?
Pesquisar mais profundamente o mundo sensorial ao seu redor? Mas ele já sabe que o próprio método científico atual desnuda esse mundo de toda "realidade", e que acaba encontrando limites fechados.
Voltar à religião? Mas ele fugiu justamente da religião porque esta não conseguiu satisfazer sua sede de saber, de conhecer. Voltar à crença, à fé cega? Nunca!
Desnorteado, o homem que chegou a esse impasse tende a refugiar-se em qualquer instituição ou cosmovisão que lhe narcotize a consciência, as dúvidas e sofrimentos. Experiências sensacionais se lhe oferecem como paliativo ou diversão, como pseudo-resposta; religiões pessimistas antigas, como o budismo com a sua profissão de fuga deste mundo; práticas místicas como o Ioga, caminho empregado numa época remota; o espiritismo com seus fenômenos sensacionalistas e fora de qualquer controle lúcido da consciência. Bem-aventurados aqueles que ainda encontram um tal caminho uma pseudo-solução. Pois os outros, quando não se entregam a drogas alucinógenas, ou decaem na indiferença, no nihilismo ou em atividades "existencialistas" (completamente alheias ao existencialismo filosófico de um Heidegger ou de um Sartre), preconizam honesta e cinicamente o triunfo do vazio e do sem-sentido. São os angry young men, os playboys, os sacerdotes da Absurdo. . .
Mas voltemos ao nosso dilema: Temos o mundo físico conhecido, objeto dos nossos sentidos e das ciências; é o mundo em que vivemos. De outro lado sentimos que existe um domínio não-físico, impalpável, mas cuja existência sentimos com uma certeza, por assim dizer, direta, inata.
Não haveria possibilidade de conhecer algo desse outro mundo, de investigá-lo consciente e cientificamente, por meios adequados, conservando a plena consciência, o espírito crítico, o raciocínio? Em outras palavras: estender o campo da pesquisa conscientemente para esse back-ground espiritual do nosso mundo sensível? Se essa possibilidade existisse, não valeria a pena examiná-la, conhecer-lhe o caminho cognitivo e os resultados porventura alcançados?
Pois bem, a Ciência Espiritual Antroposófica ou "Antroposofia", fundada e estruturada por Rudolf Steiner, afirma seguir essa via. Ela não é religião nem seita religiosa. Distingue-se da especulação filosófica, pelo seu fundamento em fatos concretos e verificáveis. E distingue-se de caminhos esotéricos como o espiritismo, pelo fato de o pesquisador, que se conserva dentro dos métodos por ela preconizados, manter a sua plena consciência, sem qualquer transe, mediunismo ou estados extáticos ou de excitação artificial.
A Antroposofia é ciência! Mas uma ciência que ultrapassa os limites com os quais até agora esbarrou a ciência "comum". Ela procede cientificamente pela observação, descrição e interpretação dos fatos. E é mais que uma teoria, um edifício de afirmações. Com efeito, ela admite e reconhece todas as descobertas das ciências naturais, embora as complemente e interprete pelas suas descobertas. Sobretudo tem feito, em todos os domínios da vida prática, muitas contribuições e inovações concretas e positivas, verdadeira pedra-de-toque dos seus princípios; na medicina, na farmacologia, na pedagogia, nas artes, nas ciências naturais e na agricultura, fez contribuições de grande importãncia, sobre as quais existe uma abundante literatura.
Mas, como toda boa ciência, a Antroposofia não se limita a afirmar, a expor resultados; indica o seu método e o caminho cognitivo que deve ser seguido para alcançar o conhecimento dos fatos expostos, nunca exigindo fé cega. O estudioso da Antroposofia deve manter seu espírito bem vigilante; só ficará satisfeito quando as doutrinas da Antroposofia confirmarem as descobertas da ciência comum ou trouxerem uma solução para um problema que, sem aquela, teria ficado insolúvel.
Nas páginas que se seguem, o leitor encontrará alguns fatos e algumas idéias básicas da Antroposofia. Não pretendo, de maneira alguma, ser completo. O leitor deverá compreender a dificuldade da minha tarefa, pois a Ciência Espiritual Antroposófica é um conjunto, um edifício completo e complexo, com muitas portas de acesso. Podemos entrar somente por uma porta de cada vez. A visão de conjunto aparecerá só mais tarde, e até lá, devo solicitar paciência e compreensão. O leitor ficará certamente recompensado pela sua perseverança.
Antroposofia significa "sabedoria do ser humano". Mas não é apenas antropologia; é, na realidade, uma ciência do Cosmo, tendo por centro e ponto de apoio o ser humano. Por isso, começaremos o nosso estudo por uma análise do mesmo.