DEZ ANOS DA MORTE DE SERGEI O. PROKOFIEFF
por Ana Paula Izidoro Cury
por Ana Paula Izidoro Cury
Este artigo foi publicado originalmente com o título "Sergei O. Prokofieff - Amigo de Michael-Cristo" na edição de agosto de 2014 do Boletim SAB.
“Este é Meu mandamento: Que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei. Ninguém tem maior amor que este que aquele que dá sua vida por seus amigos. Vós sois Meus amigos, se fazeis tudo quanto Eu vos mando. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor, mas vos tenho chamado amigos, porque todas as coisas quanto ouvi de Meu Pai, vos tenho dado a conhecer.” - João, 15
A notícia do falecimento de Prokofieff suscitou-me o desejo de reencontrá-lo nas palavras por ele escritas na introdução de seu livro “Rudolf Steiner e a Fundação dos Novos Mistérios Cristãos”. Ali ele deu a conhecer algumas passagens de sua vida na esperança de que o aspecto objetivo que subjaz à condução espiritual de seu destino humano, sob certas circunstâncias, pudesse ter significado para outros, especialmente para aqueles que desceram à Terra na segunda metade do século XX com impulsos similares. Ele imaginava que, para estas pessoas, a história de como um ser humano de nosso tempo, nascido e criado em circunstâncias espirituais tão difíceis no leste europeu e que, não obstante, encontrara seu caminho para a Antroposofia e também para aquelas questões centrais nela com seu foco no Congresso de Natal em 1923, poderia ser de interesse.
Eu certamente me encontro entre as pessoas cujas almas foram profundamente tocadas, e cativadas por ele e por este relato, o qual como um poderoso espelho me refletiu de volta, dando-me à consciência, os meus próprios impulsos relacionados ao carma pré-natal micaélico. Ali, naquelas imagens compartilhadas de sua vida, eu me reconheci como alguém pertencente, copartícipe e responsável pela continuidade do que emanara através do Congresso de Natal. Sou imensamente grata a ele por tudo quanto nos legou e pela dedicação incansável à revitalização da essência espiritual da Antroposofia em total devoção e lealdade à Rudolf Steiner. Por isso, gostaria de aproveitar o ensejo para tornar acessível a outros, algumas destas passagens de sua biografia, também como uma singela homenagem a ele.
Ele começa descrevendo dois temas, duas experiências da infância que o marcaram particularmente. Em primeiro lugar – até onde podia se lembrar – sempre se sentira internamente um Cristão. Não que houvesse qualquer influência da família neste sentido. Embora a família valorizasse muito a cultura estando quase todas as artes e ciências representadas entre as ocupações de seus membros, do ponto de vista espiritual, havia grande diversidade. Havia os que professavam uma determinada fé, outros que se julgavam idealistas e ainda aqueles que se apresentavam como materialistas convictos. Assim, para preservar a harmonia familiar e uma coexistência pacífica, ficou instituída a regra segundo a qual questões de ordem filosófica ou religiosa jamais deviam ser discutidas. De modo que ele, desde cedo, no que concerne à religiosidade ou espiritualidade, estava entregue a si mesmo. E, algo raro no país em que vivia -- a Rússia, ele tinha acesso aos evangelhos, ao novo Testamento, pois a Bíblia era considerada como uma parte essencial da herança cultural da humanidade e constava dos volumes da biblioteca de casa, ao lado das grandes obras de literatura mundial.
O segundo elemento ao qual ele se reportava em sua infância era uma consciência um tanto vaga em conexão com um sentimento constante de que ele não estava vivendo na Terra pela primeira vez, mas que possuíra uma existência anterior ao seu nascimento em um mundo completamente diferente, um mundo radiante e imensuravelmente mais sublime. Em sua infância e juventude escrevera versos que tentavam expressar estes sentimentos que não poderia então formular em pensamentos claros.
Quando um dos membros mais velhos da família traduziu o libreto da ópera Parsifal, de Wagner, ele ficou profundamente impressionado pelas imagens da saga, e o tema o acompanharia espiritualmente pelos anos subsequentes, fazendo-o sentir-se preenchido por um impulso que vertido em forma de pergunta poderia ser assim expresso: onde posso encontrar a continuação moderna desta corrente espiritual cristã descrita nesta história?
Este anseio íntimo, e a constante busca por uma resposta, intensificaram-se ao se familiarizar com elementos da sabedoria oriental, particularmente da Índia, na qual ele reconhecia um profundo conhecimento, verdadeiro tesouro para o espírito, mas que carecia de um centro, pois lhe faltava o Cristo. Na igreja oficial ele não sentia a continuação daquela corrente que identificara nos conteúdos de Parsifal. A questão do Cristianismo Esotérico ardia em sua alma com força considerável.
Aproximadamente aos 14 anos, aconteceu de ele tomar contato com o livro de Steiner “Conhecimentos dos Mundos Superiores – como adquiri-los?” - o primeiro texto de Antroposofia que leu. Ele se referiu a esta experiência assim: “Após a leitura, se me tornou absolutamente claro que eu tinha em mãos uma descrição do caminho da alma humana para Cristo, dado a partir do espírito de nosso tempo!” Ele nada sabia na época de Rudolf Steiner ou do Goetheanum, mas pouco tempo depois, chegou-lhe às mãos outro livro: “A Ciência Oculta” em francês, que o tocou especialmente pela meditação Rosacruz, cuja prática ele assumiu desde então como parte inseparável de sua vida interior. E nesta obra de Steiner obteve a confirmação de que o caminho Cristão Rosacruz era a moderna forma dos Mistérios do Santo Graal que ele tanto procurava. Ele se recorda: “Ao senso interno para a irrefutável verdade daquele estado de coisas, adicionava-se agora o conhecimento puro e abrangente de que assim realmente era”.
Por causa de certos relacionamentos de família, ocorreu que ele foi levado aos 14 anos a uma casa às margens do Mar Negro, na Criméia Oriental que pertencera a um bem conhecido poeta (Maximilian Voloshin, 1877—1932), o qual logo antes da primeira grande guerra participara da construção do primeiro Goetheanum. Nesta casa havia uma enorme biblioteca repleta de títulos da literatura esotérica em russo e em francês, contendo quase todas as obras básicas de Steiner publicadas na Rússia antes da revolução. Assim, dos 14 aos 19 anos ele pôde se familiarizar com as principais obras de Steiner e outros autores ocultistas pertencentes às correntes do oriente, da mística cristã, e teosófica. Ele realmente passou cinco anos em completa solitude espiritual, pois ninguém à sua volta se interessava pela Antroposofia. Este foi para ele um importante tempo de provação e amadurecimento, ao final do qual ele tomaria a resolução de dedicar toda sua vida ao Ser Antroposofia. Sua existência adquirira um novo sentido e significado com o início de seu serviço deliberado àqueles ideais que anteriormente residiam latentes em sua alma e que emergiram como realidade consciente através da ciência espiritual à qual ele fora conduzido pelo destino.
E ele o relatou assim: em agosto de1973, um homem jovem veio em visita àquela casa do poeta russo, e eles ali se conheceram. Este jovem era um antróposofo. Ele vivia no noroeste da Rússia. Ao final do encontro eles trocaram endereços e seis meses mais tarde, Sergei Prokofieff foi visitar seu novo amigo. Este emprestou-lhe vários ciclos de palestras de Steiner. Durante uma de suas visitas, o amigo sugeriu certa noite que eles lessem juntos um ciclo de palestras sobre o carma dos antropósofos. Tratava-se das famosas palestras do sexto volume sobre relações cármicas (GA 240). Por toda a noite ele não pregou os olhos um momento sequer. Somente o respeito pelo amigo o impediu de despertá-lo e contar-lhe imediatamente sobre os novos sentimentos que o preenchiam de forma tão avassaladora que teve de render-se a eles ficando quase sem fala. Foi como se uma cortina tivesse sido removida ante o olhar da alma. “Agora eu conhecia o Ser espiritual a quem eu servia e a quem dali em diante queria devotar todo meu ser – o Semblante de Cristo – Michael – inspirador da moderna ciência espiritual”. Tais momentos na vida são momentos de consagração interior, quase como um juramento solene. De maneira notável Rudolf Steiner segue descrevendo nestas palestras sobre seu compromisso com o mundo espiritual e os poderes espirituais que o guiavam, além da inabalável lealdade em relação à tarefa espiritual que ele assumira para si. Naquele momento, ele, Prokofieff, era incapaz de formular claramente em palavras o que Steiner tinha em mente ao assumir tamanho compromisso, mas podia sentir-se intima e misteriosamente conectado em sua resolução com Rudolf Steiner e sua missão. Mesmo que ele pouco soubesse sobre a Assembleia de Natal, a experiência daquela noite foi por ele reconhecida como seu primeiro contato com o Espírito ali presente.
Após o Congresso de Natal – disse Steiner nas palestras de Arnhem – tudo no movimento antroposófico e na Sociedade Antroposófica se tornaria diferente. “Vede, Eu faço novas todas as coisas!” (livro das Revelações 21:5). Este motivo soava com especial poder destas palestras e evocava um profundo eco em sua alma. Dali em diante, sentiu ele, tudo em sua vida também seria diferente, novo, pois ele assumira um compromisso solene, o primeiro compromisso consciente de sua vida.
Ele teve outras três experiências similares a partir da leitura do Quinto Evangelho, das cartas Micaélicas e do ciclo de palestras de Neuchatel sobre Christiano Rosacruz. A partir deste momento, passou a esforçar-se por ordenar sua vida meditativa segundo as recomendações dadas por Steiner aos pupilos da escola esotérica por ele fundada e que existira até 1914. Tudo isso acontece logo antes de seu 21º aniversário.
Na Páscoa de 1976, acontece de ele se encontrar pela primeira vez em um pequeno círculo de pessoas cujo trabalho antroposófico era acompanhado da leitura da Meditação da Pedra Fundamental em Alemão e em Russo. Quando ele ouviu aqueles versos mântricos em alemão, todo um mundo novo, uma nova espiritualidade se descortinou para ele. Pela primeira vez, sentiu que linguagem e significado, forma e conteúdo eram uma só coisa, em indissolúvel unidade. E experimentou algo de sua essência esotérica como a moderna revelação da Palavra Cósmica, isto é, como algo que procedia do próprio Cristo. O período seguinte foi devotado ao trabalho diário com esta Meditação cujo texto em alemão ele em breve tempo, já trazia consigo de cor. Assim, por obra do destino, aconteceu que o primeiro texto em alemão que penetrou sua vida foram os versos da Pedra Fundamental. Agora ele já não tinha mais dúvida: tinha de aprender o mais rápido possível esse idioma, para ele a linguagem da nova revelação Crística.
Ele sentia que havia somente um único texto que, escrito em língua humana, poderia num sentido espiritual, ser comparado à Meditação da Pedra Fundamental: o Evangelho de João em seu Prólogo e nos discursos de despedida do Cristo Jesus. Para ele era óbvio que ambos se originaram da mesma fonte divina, da esfera universal do Logos, como direta revelação do Cristo vivo. Tal como podemos nos voltar internamente para o evento central da virada dos tempos, o Mistério do Golgotha, e encontrar aos pés da cruz o discípulo que o Senhor amava, testemunha consciente deste mais grandioso acontecimento de toda a história terrena; também em nosso tempo, ao dirigirmos nossa atenção ao reaparecimento suprassensível do Cristo no etérico, que foi precedido de uma repetição do Mistério do Golgotha nos mundos superiores; se buscarmos uma pessoa que similarmente se encontra como testemunha consciente e proclamador na Terra do principal evento espiritual do século XX, haveremos de nos deparar com Rudolf Steiner.
No período que se seguiu ele se familiarizou com todo o material disponível sobre a Conferência de Natal e depois disso com a história de todas as dificuldades e conflitos dentro da Sociedade Antroposófica após a morte de Rudolf Steiner. Tais conteúdos o impressionaram tão fortemente que por vários dias ele ficou fisicamente enfermo. E como resultado, segundo ele próprio, aprendeu o que significava realmente tornar-se discípulo de Steiner também nesta esfera. A realidade daquilo que acontecera tinha de ser suportada, e não somente conhecida de forma intelectual e abstrata. Mas em contrapartida, a presença do mestre espiritual se fez sentir mais próxima e foi então que ele se reconheceu como seu pupilo esotérico.
A partir da dor que a vivência daqueles conteúdos trouxera, nascia nele um poder de magnitude correspondente para lutar pela realização do impulso da Conferência de Natal. “Esta dor deve conduzir-nos a assumir nossas tarefas com uma determinação tanto mais forte”. Estas palavras de Marie Steiner converteram-se para ele em motivo condutor da vida, um chamado para exercer toda a sua força na consecução desta tarefa deixada por Steiner aos membros. Fazer viver o impulso do Congresso de Natal através de nós em irradiação para o mundo, por meio do cultivo da vida do espírito.
Prokofieff declarou que o momento em que a natureza essencial da ‘Pedra Dodecaédrica do Amor’ como imaginação do Graal Micaélico de nosso tempo se revelou a ele como experiência espiritual real foi o mais sublime de toda sua vida. A partir disso, ele se conectou com todas as forças de sua alma à Antroposofia e seu destino terreno. Estabelecer na Terra a moderna comunidade de Michael, que em nosso tempo deve se tornar uma nova irmandade dos cavaleiros e guardiões do Santo Graal, era o que ele concebia como a principal tarefa da Sociedade Antroposófica Geral.
Não tenho dúvida de que ele deu o seu melhor por esta causa. Estou certa de que ele a amou ao ponto de dar a própria vida. Sentiremos falta deste grande amigo de Michael na Terra. Possam nossos pensamentos em amorosa gratidão envolvê-lo qual um manto protetor e que ele encontre em nós dignos continuadores do seu impulso e empenho pela Antroposofia no mundo.
Ana Paula Izidoro Cury é médica formada pela UFMG e em Medicina Antroposófica pela ABMA. Fundadora da Escola de Famílias da Escola Waldorf Rudolf Steiner e do COPA, que forma líderes para Comunidades de Prática Parental Consciente. Membro do MOVEH, movimento pela Educação Humanizadora. Atua como docente convidada pela Faculdade Rudolf Steiner e outras instituições, além de conferencista sobre temas como antroposofia, saúde e educação.