SOBRE A ÚLTIMA ALOCUÇÃO DE RUDOLF STEINER
por Rogério Y. Santos
por Rogério Y. Santos
Rudolf Steiner abre sua última palestra pública dizendo que, embora muito enfraquecido, não poderia deixar de transmitir o que deveria irradiar nos corações a partir da atmosfera consagrada a Micael, e que apenas devido aos cuidados abnegados da Dra. Ita Wegman, foi possível que ele estivesse presente naquela noite.
Ao trazer o sentido da Festa de Micael, mais propriamente a importância de se procurar uma atmosfera festiva correta para Micael, ele indica a importância de no futuro acrescentar a festa de Micael às demais festas anuais. E isso uma vez realizado poderia representar “uma das mais belas conquistas da interpretação antroposófica dos sinais dos tempos”.
Como pré-condição para alcançar essa meta de se criar plenamente essa festividade, Steiner indica que o aspecto poderoso do pensamento de Micael precisaria antes ser passado para um certo número de almas humanas, algo que ele retoma ao encerrar a sua palestra, devido ao esgotamento de suas forças físicas.
Enquanto esse momento de conquista não chega para a humanidade, Rudolf Steiner menciona que podemos nutrir certos pensamentos preparatórios(1) sobre o que deve se tornar um fato em prol da evolução da humanidade, caso tais pensamentos sejam tornados vivos pela disposição anímica correta, algo necessário para que sejamos atraídos para a corrente de Micael.
Pouco dias antes dessa última alocução, Rudolf Steiner havia concluído seu ciclo de 82 palestras sobre o carma e chama a atenção para o que fora a sua intenção, ao falar do carma da Sociedade Antroposófica: expressar que os antroposófos deveriam desenvolver uma inclinação genuína pelo que a antroposofia deveria fluir para o mundo, para fazer parte desse grupo de almas que poderia carregar essa atmosfera correta e se tornarem assim fiéis servidores de Micael.
Após essa breve introdução, Rudolf Steiner passa então a se referir a uma individualidade que produziu uma forte impressão sobre a humanidade em duas encarnações consecutivas e está cada vez mais relacionada com a corrente de Micael: o pintor Rafael e o poeta Novalis.
Steiner conduz então o olhar dos presentes para Rafael, uma alma que vivia mergulhada em profundos impulsos cristãos e que reaparece em Novalis de uma forma transformada. A essência do cristianismo vivenciada em forma, traço e cor por Rafael, ressurge na maravilhosa poesia de Novalis.
Steiner se refere então a essa individualidade de Rafael-Novalis em sua antiga reencarnação como o profeta Elias, cuja força de atuação na Terra teve uma importância norteadora, não apenas ao povo do Antigo Testamento, mas para toda a humanidade, aparecendo em momentos decisivos da sua evolução.
Prosseguindo, Steiner menciona a presença de Elias no momento da iniciação de Lázaro-João pelo próprio Cristo Jesus. Se seguimos a indicação de Steiner nesta passagem e olhamos mais de perto esse fato em sua obra “O cristianismo como fato místico”, podemos constatar que, por meio dessa iniciação, é o próprio “Verbo” que ressurge como uma nova vida em Lázaro. O “Verbo Eterno”, o primordial, torna-se vida em Lázaro, tornando-o apto a compreender no sentido mais profundo, a natureza desse “Verbo” que estava diante dele.
Isso tem uma importância decisiva para se compreender como essa individualidade, que se encarnou mais tarde em Rafael e Novalis, cumpre a tarefa de ser um mensageiro da corrente micaélica que conduz à uma relação futura com o Cristo, experiência vivida por Lázaro.
Steiner passa então a descrever o que acontece com a alma de Rafael ao transpor o portal da morte, em sua passagem pelas esferas planetárias.
Ao passar pela esfera lunar, a alma de Rafael estabelece uma relação com os mestres primordiais da humanidade, que em tempos passados já o haviam inspirado quando era Elias. A alma de Rafael vivencia junto com esses seres, estados terrestres anteriores que os unem espiritualmente com tudo que constitui as origens espirituais terrestres, quando foi possibilitado ao elemento terrestre ser permeado pelo elemento espiritual.
A alma de Rafael passa então pela esfera de Mercúrio, onde outrora, seres sanadores cósmicos o haviam capacitado para tudo o que ele pôde criar em cor, em forma, para consolo e entusiasmo dos seres humanos.
Da esfera de Vênus a alma de Rafael é conduzida amorosamente à esfera do Sol, mediante a qual em tempos passados a sua alma, enquanto Elias, pôde ensinar as grandes verdades à humanidade, por meio do seu povo.
Na esfera do Sol, a alma de Rafael consegue reviver intimamente o que foi vivenciado na época do Gólgota, na passagem mais enigmática desta última alocução: “Vermos como na esfera solar ele conseguiu reviver intimamente, de modo distinto do que na época em que foi companheiro do Cristo Jesus na Terra, aquilo que vivenciou quando, por meio da iniciação pelo Cristo Jesus, transformou-se de Lázaro em João”.
Para se compreender o que se oculta nessa frase, seria necessário conhecer algo que Rudolf Steiner teria relatado mais tarde, de modo reservado aos médicos(2) que o acompanhavam, sobre o encontro de duas correntes, de Caim e Abel, naquele momento da iniciação de Lázaro-João(3).
A alma de Rafael continua seu caminho passando agora pela esfera de Júpiter, onde se encontra com o que vivia nas individualidades que mais tarde se encarnariam em Goethe, Eliphas Lévi e Swedenborg, permeando sua vida em espírito com a sabedoria de um pensar universal, preparando o que viria a ser o aspecto mágico, o idealismo mágico que se manifestaria em sua encarnação seguinte, como Novalis.
Steiner relata então um fato curioso, que tem como causa as características que viviam na encarnação dessa entidade como Rafael: a grande dificuldade do escritor alemão Herman Grimm de elaborar a biografia de Rafael. Depois de várias tentativas, o que Herman Grimm consegue publicar não tem a ver propriamente com a vida terrena do pintor, mas aquilo que vivia na devoção, no reconhecimento, na compreensão das pessoas sobre a arte de Rafael ao longo do tempo. Herman Grimm refere-se, a partir dessa dificuldade, que era como se uma entidade supraterrestre, cuja vida nem tocara a superfície da Terra, tivesse sido a verdadeira autora dessas maravilhosas obras de pintura.
Ao descrever essa dificuldade de Herman Grimm de olhar para a vida terrena de Rafael, Steiner fala novamente, agora de modo um pouco mais elucidativo, da relação dessa individualidade com Lázaro-João, não como Elias, mas agora como Rafael: “Essa personalidade terrena de Rafael estava totalmente fascinada e só estava inteiramente presente, meus queridos amigos, pelo que Lázaro-João havia doado a essa alma [de Rafael], para que isso fluísse para a humanidade em cor e em traço”.
A entidade que havia antes aparecido ao mundo como Elias e João Batista, surge agora na Terra como Rafael e Novalis. Tanto Rafael quanto Novalis falecem jovens e, ao se apresentarem à humanidade de duas formas artísticas distintas, preparam a atmosfera de Micael que vem do alto para os seres humanos da Terra, atuando em ambos a entidade que pode ser considerada uma legítima mensageira da corrente de Micael.
O belo que aparece na poesia de Novalis possui um brilho poético quase celestial. Com seu idealismo mágico-poético ele faz o elemento material mais insignificante ressurgir em seu luminoso brilho espiritual. Assim como Rafael, que fora retratado por Herman Grimm como um ser suprassensível que nem tocara a Terra, Novalis pôde extravasar na poesia seu idealismo mágico como se, também ele, não desejasse ser tocado pela vida terrena.
Novalis, diz Steiner, é um prenunciador brilhante da corrente de Micael, e Micael é aquele que deve conduzir a humanidade para a obra que deve acontecer no fim do século XX, procurando superar a grande crise na qual ela, a humanidade, está inserida.
Podemos entender essa crise como o ápice da influência arimânica sobre o pensar humano e a obra que deve acontecer no fim do século XX para conduzir a humanidade para além dessa crise em que está inserida, pode resultar da força de superar essa forma de pensar.
Essa obra é a grande e poderosa permeação da força de Micael, pela vontade de Micael, que nada mais é que aquilo que antecede a vontade do Cristo, a força do Cristo, que deve ser implantada corretamente na vida da Terra.
Com as forças físicas já bastante enfraquecidas, Rudolf Steiner retoma o que havia mencionado no início da sua palestra, sobre a tarefa dos antropósofos: quando eles, pela sabedoria antroposófica, puderem acolher em si o pensamento de Micael, quando tiverem acolhido e conservado esse pensamento de Micael com sincero amor e fidelidade no coração, não apenas acolhendo esse pensamento de Micael em todo o seu vigor e força do que pode ser revelado à alma, mas principalmente, tornando-o vivo em atos humanos, só então poderão ser chamados de fiéis servidores desse pensamento de Micael, nobres servidores daquilo que deve se tornar vigente na evolução terrestre por meio da antroposofia.
Ele complementa afirmando que, se o pensamento de Micael se tornar plenamente vivo em quatro vezes dozes pessoas, reconhecidas não por elas próprias, mas pela direção do Goetheanum, de modo que possam surgir como guias para a almejada atmosfera festiva de Micael, só então poderemos contemplar a luz que no futuro se alastrará na humanidade por meio da corrente de Micael e dos feitos de Micael.
Rudolf Steiner encerra solenemente sua palestra com as seguintes palavras:
“Meus queridos amigos, tentei recobrar o ânimo para lhes dizer, ao menos nessas poucas palavras, que é assim. Hoje minhas forças não conseguiriam fazer mais do que isso. Mas é isso o que deve ressoar hoje em sua alma das seguintes palavras: que vocês acolham esse pensamento de Micael no sentido daquilo que um coração fiel a Micael consegue sentir quando Micael aparece no traje resplandecente de luz solar, e primeiro indica e aponta para o que deve acontecer para que a veste de Micael, essa veste de luz, possa transformar-se nas ondas de palavras que são palavras do Cristo, que são palavras cósmicas que podem transformar o Logos do universo em Logos da humanidade. Portanto, as palavras que hoje dirijo a vocês são:
Potências espirituais resplandecentes,
Que nascestes de poderes solares
E agraciais mundos;
Estais predestinadas, pelo pensar dos deuses,
A ser a veste radiante de Micael.
Ele, o mensageiro do Cristo, revela em vós
Sagrada vontade cósmica, que sustenta seres humanos;
Vós, os claros seres dos mundos etéricos,
Levai o verbo do Cristo ao ser humano.
Assim aparece Micael, o anunciador do Cristo,
Às almas expectantes e sedentas;
Vosso verbo-luz irradia até elas
No tempo cósmico do homem-espírito.
Vós, discípulos do conhecimento do espírito,
Acolhei o sábio aceno de Micael;
Acolhei o verbo-amor da vontade-cósmica
Atuante nas elevadas metas das almas.”
1 O autor deste resumo supõe que Rudolf Steiner esteja se referindo aos conteúdos dados por ele naquele ano, mais especificamente as aulas da Primeira Classe, e as diretrizes (também conhecidas como máximas) antroposóficas (GA 26: Anthroposophische Leitsätze).
2 Dra. Ita Wegman e Dr. Ludwig Noll.
3 Ver Krause-Zimmer, H. Christian Rosenkreutz, Dornach: Verlag am Goetheanum, 2009; 2º e 3º capítulos. Ver também Steiner, R. Observações esotéricas de relações cármicas. Vol IV. São Paulo: Antroposófica, 2024; último capítulo: „Observações complementares ao conteúdo da alocução de 28 de setembro de 1924“.
Este resumo foi apresentado no dia 28/9/2024 aos Ramos da Sociedade Antroposófica no Brasil, em memória aos 100 anos da última conferência pública dada por Rudolf Steiner. Com os agradecimentos à Dra. Sonia A. L. Setzer pelas contribuições ao texto.
Última edição em 10/10/2024 às 8h30
A ‘Última Alocução’ encontra-se publicada no GA 238, junto com as 10 palestras que formam o quarto volume da obra Observações esotéricas de relações cármicas, publicado pela Editora Antroposófica em 2024, com tradução de Sonia A. L. Setzer e cotejo de Valdemar W. Setzer. Uma versão digital da palestra está disponível aos membros e amigos registrados no ‘Portal de Informações’ do site da Sociedade Antroposófica no Brasil.
Rogério Y. Santos é atualmente um dos três secretários-gerais da Sociedade Antroposófica no Brasil, para o período de 2022-2029.