"NATAL ERA NOITE NOVA DE ANTIGUIDADE"
por Renato Gomes
por Renato Gomes
O autor tomou como título uma frase emprestada do conto "Presepe",
que compõe a obra Tutameia - Terceiras Estórias, de João Guimarães Rosa.
O Natal costuma ser uma festa muito esperada. Para as crianças, pela magia, pelos presentes... Para os maiores talvez também; mas os feriados do final do ano, o verão ou mesmo a esperada viagem de férias dão um colorido diferente a estas expectativas.
O Natal reúne familiares e amigos, evoca lembranças - alegres ou nem tanto - da infância, nos estimula a desejar e a escrever bons augúrios para aqueles que queremos bem.
Cresce, porém, em torno do Natal um turbilhão: planos a executar, compras para fazer, várias saídas programadas, outras nem sempre. Algumas frustrações e atropelos são inevitáveis, tanto mais quando se coloca na mente que está se aproximando um Tempo de Paz ou idealizamos uma Noite Feliz.
Natalis, natalidade, nato. Natal é nascimento. Nascer é o final de um processo e ao mesmo tempo o começo de outro. Conceber, acolher, nutrir e proteger, tudo isto é gestar, cujo significado original consistia no ato de levar consigo ou de carregar algo. O nascimento é a crise, a ruptura, a separação. O que havia sido até então carregado no escuro caloroso do ventre materno (ou do relicário do coração) vem à luz. Manifesta-se. Revela-se. Mas também se expõe e se torna vulnerável. São necessários outros cuidados, outras percepções, para que o que nasceu prossiga, persevere e, principalmente, não seja esquecido ou engolido pela rotina dos muitos afazeres.
O Natal primordial, segundo Lucas, começou a ser preparado bem antes. Num dia houve um anjo que trouxe a mensagem, a Boa-Notícia, tão esperada, mas sem data definida para ser anunciada. E houve alguém de bom-ouvido, que escutou, que acolheu, que protegeu aquelas sublimes palavras. (Pois palavras de anjo - principalmente as de um arcanjo - são sempre sub-limis; elas provêm daquele limiar entre o que compreendemos e o intangível). A partir de então, Maria sabia o que estava por-vir; ela reconheceu o ad-vir. Iniciou-se o Advento. Era longo o caminho a ser trilhado. Lucas nos conta uma parte deste caminho: deixando para trás as verdes colinas da Galileia, a jovem e seu esposo José peregrinaram pelas áridas montanhas da Judeia. Não por escolha própria, mas por determinação de outrem. De alguém poderoso, que numa cidade longínqua tomou tal decisão e colocou todo o povo em movimento: Todos deviam ir à cidade de seu nascimento, a sua Cidade Natal. O caminho daquele que está por vir, leva José de volta ao lugar de seu próprio nascimento.
Advento – que está relacionado com o porvir, com o nosso próprio devir – também hoje, pode começar com um empurrão (e não importa muito se o recebemos “de fora”, ou de outros). Os poderosos deste mundo sempre o fazem assim: empurram, impõem, pois creem que decidem. Mas o que fazemos com tal empurrão depende de nós. Advento é oportunidade de ir ao encontro do que está por-vir. Mas este caminho que nos leva em direção ao porvir indica também o lugar do próprio nascimento. É voltar a nascer, pelo menos no desejo, na vontade. Vontade de tornar a nascer nos aproxima de novo da mensagem do anjo (neste caso o nosso anjo, o menor, o guardião), que nos foi dita ao ouvido quando ainda sabíamos a que viemos.
Advento é querer recordar a nossa própria Boa-Nova, também sub-limis, posto que foi sussurro angelical, acolhido nalgum rincão delicado da alma pelo ouvido ainda virgem, mas que com o tempo ficou silencioso demais para ser notado, em meio a outros barulhos.
Parece, portanto, que o advento começa com um andar para trás, mas o que nos motiva é o que está à frente. As crianças entendem melhor. Afinal estão mais próximas da origem. Os ecos das palavras do anjo são mais audíveis para elas. Talvez seria mais fácil festejar o advento, se deixássemos as crianças nos mostrarem o caminho. Advento não é trajeto, onde se vai de um lugar ao outro, mas caminho que nos ajuda a chegar ao lugar de onde partimos.
Lucas nos conta ainda que ao chegarem, não havia lugar. Tudo já estava ocupado. Raramente há lugar. Lugar se cria. Mas só se pode criar onde há vida. Estábulo é lugar vivo. Há recolhimento para o repouso da noite e cocho para “mangiare”, para nutrir e renovar as forças de vida. Naquele estábulo havia manjedoura e nela foi colocada a criancinha. Os céus se abriram. O sublime (mais uma vez: sub-limis) fez descer seu limiar bem próximo à Terra e o canto sussurrado dos anjos foi ouvido com nitidez. Naquela noite havia nascido quem, não apenas guardaria audível as palavras da sua própria Boa-Nova, mas cuja tarefa era ajudar aos que, com boa vontade, também quisessem deixar ressoar de novo as suas próprias mensagens de nascimento, aquelas intenções pré-natais com as quais viemos ao mundo. Tal façanha não era – e não é - tarefa fácil, mas alguns o conseguiram. Eram pastores, gente do campo, acostumados a dormir debaixo das estrelas. Eram gentes acostumadas ao silêncio. Sabiam silenciar o desnecessário e estavam acostumados a sossegar as agitações passageiras. No silêncio, na calma, eles reconheceram a paz que reverberava naquela noite. E quando esta paz se instalou em seus corações de gente da terra, eles partiram dali para reconhecer na manjedoura o que já tinham ouvido no próprio silêncio.
O que falta para o Natal de hoje tornar audível de novo a mensagem dos anjos? Talvez um punhado a mais de boa-vontade e menos rigidez no coração para auscultar os ecos da paz. O ribombar dos explosivos e a explosão das palavras ocas dos que não querem a paz já conhecemos exaustivamente. Uma certa simplicidade de ‘gente da terra’, que se ocupa do rebanho, que cuida com amor das criaturas deste mundo, nunca está demais. Então o limiar dos céus pode de novo descer à Terra. Natal!
Mateus, coautor da Boa-Nova como Lucas, também contou sua história do Nascimento. Também houve a mensagem do anjo, que desta vez falou a José sobre o nome-destino daquele que deveria nascer: Emanuel – Deus no meio, conosco!
Lucas falou que o limiar dos céus se abriu e baixou à Terra.
Mateus confirmou a notícia e, junto com João, acrescentou que dali em diante o Verbo feito carne permaneceria entre nós. Em nosso meio.
Houve ainda alguns sábios, letrados nos astros, que entenderam as palavras escritas no alto firmamento. Reconheceram qual estrela deveriam seguir e chegaram bem próximo ao lugar: Jerusalém.
A cidade santa estava, naquele momento, sendo regida por um governante acossado pelo medo, cego pelo poder e anestesiado diante do real sentido da vida. Herodes foi seu nome naquele momento, mas outros houve ao longo da história antiga e recente que desempenharam papéis similares em seus pretensos domínios.
Os sábios do Oriente ouviram daquele rei circunstancial algumas meias-verdades (prática que não diminuiu muito nos círculos de poder, apenas se modernizou). Ainda assim, os que conheciam os sinais dos céus conseguiram apreender o pouco de verdade, que a mentira não foi capaz de encobrir: Belém.
A verdade é como uma estrela. Pode ser encoberta por um tempo, mas nunca deixa de brilhar, pois se encontra mais elevada.
E a verdade-estrela os levou ao lugar que buscavam.
Naquele lugar eles encontraram a quem procuravam. Lá eles reconheceram na criança o verdadeiro rei. Epifania - a manifestação daquele que se revela, apenas a quem verdadeiramente o busca ou, só se revela, a quem, com sincero empenho, a verdade busca.
Contudo era preciso cuidar para que o outro, o rei de mentira, não se apoderasse dele.
Para tanto, os sábios ofereceram à criança-estrela o que tinham de melhor: o brilho dourado de seu pensar que havia sido treinado para investigar o firmamento, as melhores forças do coração humano que - qual incenso - se oferecem em sacrifício em prol da evolução e por fim a vontade de sanar e revitalizar o que se afastou da esfera da vida, que foi identificada na resina amarga e curativa da mirra.
Os sábios regressaram a suas terras, para prosseguir no cuidado das tarefas que o destino lhes encarregara. Não retornaram a Herodes. As obrigações laborais e familiares também nos convocam, depois dos momentos de festas e de celebrações, a retornar. Mas deve-se prestar atenção que a aridez da rotina e a pressão dos muitos deveres não nos distraiam a ponto de, de repente, nos vermos de volta à cidadela de Herodes, posto que há muitos Herodes por aí.
Há os que continuam a erguer suas espadas ameaçando acabar com os que ousam falar da mensagem das estrelas. Há outros, pois, que articulam expulsar e expurgar os que ainda acreditam na criança-divina que quer nascer em cada ser humano. Há também os Herodes, oportunistas do momento, que prosseguem espalhando mentiras para desviar a atenção de muitos... Talvez todos eles pressintam que seu poder é frágil e sua trajetória limitada, restando-lhes apenas lançar mão de sua irracionalidade bruta.
Os magos do Oriente foram sábios. Retomaram seus caminhos de vida sem regressar a Herodes.
E a criança-estrela encontrou acolhida (mais uma vez graças ao sussurro do anjo) no país estrangeiro. Em certo sentido todos somos estrangeiros, quando deixamos de ser 'gente da terra'. Não importa o lugar. A acolhida é o que mais importa.
O ciclo das festas do final do ano e do início do novo - Advento, Natal, Epifania (festa dos Reis Magos) - desenvolveu-se na tradição cristã com muitos símbolos, histórias, cantos e costumes. Entretanto apenas a tradição que nos chegou do passado tem se mostrado, em muitos lugares e para muitas pessoas, pouco eficaz para inflamar com novo entusiasmo o verdadeiro sentido espiritual que lhes é inerente. A modernidade exige, todo o tempo, novidades, aceleração e que nada seja muito profundo.
O tempo de verão traz seus próprios desafios, posto que o entusiasmo do período das férias tende com maior facilidade a se dirigir para fora e para o sabor do momento.
Por outro lado, é no solstício de verão que temos a maior intensidade da luz e do calor do sol. Que tal presente da natureza possa nos ajudar a interiorizar esta luz e este calor durante a vida e as tarefas do ano inteiro. Pois a mensagem do Advento, do Natal e da Epifania falam justamente do advir e do devir do Sol Espiritual de Cristo.
Uma das intenções deste artigo, foi trazer um pouco das imagens conhecidas dos Evangelhos e costurá-las com reflexões sobre temas atuais que nos ocupam e nos preocupam. O período entre o Natal e o dia de Reis compreende 12 dias (ou 12 noites). São dias (e noites) em que poderíamos talvez dizer: os céus estão abertos! Fica o convite para observar, ouvir e meditar em tudo isto.
Renato Gomes nasceu no Rio de Janeiro em 1962. É formado em medicina pela UFRJ em 1986, pastor da Comunidade de Cristãos, ordenado em 1991 pela Freie Hochschule der Christengemeinschaft, Stuttgart (Alemanha). Trabalhou em Munique (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), Botucatu (SP - Brasil), e atualmente em Havelhöhe - Berlim (Alemanha). Também atuou na rede pública de Saúde no Estado de São Paulo como médico clinico geral. É casado e tem duas filhas.