A CRISTOLOGIA DE RUDOLF STEINER: UM PRESENTE PARA UMA VISÃO DO CRISTO APROPRIADA PARA NOSSA ÉPOCA
por Carlos Maranhão
por Carlos Maranhão
Ao completar um século desde o falecimento de Rudolf Steiner, trata-se de refletir sobre sua contribuição para todos os âmbitos do saber humano. Quero aqui fazer um levantamento específico no âmbito de sua cristologia. Ao olhar para sua obra amplamente, percebemos o papel central de Cristo em toda a Antroposofia. Isso se manifestou bem cedo, quando na virada do século XIX para o século XX, Steiner proferiu as palestras em Berlin, de 19 de outubro de 1901 a 26 de abril de 1902, que depois se consolidaram no livro O Cristianismo como Fato Místico e os Mistérios da Antiguidade [1].
Nesse livro, Steiner demonstra como o cristianismo não pode ser reduzido a um simples evento histórico ou a um sistema de crenças, mas deve ser entendido à luz das antigas tradições iniciáticas. Ele argumenta que as escolas de mistérios egípcias, gregas e platônicas já preparavam a humanidade para a revelação do Cristo, conduzindo os iniciados por processos de morte e renascimento simbólicos que prefiguravam o Mistério do Gólgota. Steiner examina como esses antigos mistérios buscavam a transformação da alma humana, permitindo que o indivíduo experimentasse estados superiores de consciência. A partir do Mistério do Gólgota, essa iniciação tornou-se potencialmente acessível a toda a humanidade, dependendo, é claro, do estabelecimento da relação com o Cristo. Este, ao passar pela morte e ressurreição, abriu um caminho universal de redenção. Steiner propõe que o verdadeiro cristianismo não deve ser apenas objeto de crença cega, mas deve ser vivido como um processo de transformação interior. Ele conecta essa visão com a ciência espiritual moderna, argumentando que a verdadeira compreensão cristã exige um despertar interior unido a um conhecimento científico-espiritual. Não se trata mais de mera crença, mas da fé unida ao conhecimento, à vivência do Cristo. O cristianismo, em sua essência, é uma força transformadora que conduz a humanidade à liberdade e ao amor consciente.
Outro livro seminal foi o De Jesus a Cristo [2], também como compilação de uma série de conferências proferidas em Karlsruhe (Alemanha), de 4 a 14 de outubro de 1911. Nesse livro, Rudolf Steiner demonstra que sua cristologia se distingue das formulações tradicionais ao integrar elementos esotéricos e uma perspectiva evolutiva da consciência humana, argumentando que o evento do Mistério do Gólgota, a Crucificação e Ressurreição de Cristo, marcou um ponto central na história da humanidade, inaugurando uma nova fase na evolução espiritual. Sua visão se distancia tanto da teologia dogmática quanto das interpretações teosóficas de sua época, especialmente da ideia defendida por Annie Besant e C.W. Leadbeater de que Cristo poderia reencarnar ciclicamente, como supostamente no caso de Jiddu Krishnamurti. Assim, Cristo encarnou uma única vez, e esse evento alterou definitivamente a relação da humanidade com o divino. Até esse aquele momento, a humanidade vivia uma relação externa com esse Ser Solar, através das escolas de mistérios e guiada por iniciados. Com a encarnação de Cristo, na transição dos tempos, o Logos tornou-se carne e marcou o início de uma mudança nessa relação, pois, por meio dele a humanidade entraria num processo de amadurecimento do Eu, direcionado a desenvolver livremente a relação com o divino de forma cada vez mais consciente. A partir da ressurreição e da ascensão o Cristo passa a viver na atmosfera etérica da Terra, e, ao mesmo tempo, potencialmente, no interior da alma humana.
Outra ideia fundamental para compreender a Cristologia de Rudolf Steiner é a de “evolução”. Trata-se da ideia de que o ser humano não foi criado pronto, mas em processo de constante evolução. Se o ser humano tivesse sido criado pronto, não passaria de uma cópia de Deus, uma espécie de espelho. Um ser criado por Deus para tornar-se verdadeiramente conforme a sua imagem e semelhança, teria que ser também livre e isso só poderia ser alcançado após um longo processo evolutivo. O ser cósmico de Cristo, o Deus filho, estava presente no princípio da Criação e foi corresponsável por essa criação. Ele estava, desde o princípio, destinado a tornar-se ser humano, na condição terrena, para resgatar o ser humano de um processo inevitável de queda. Esse processo de queda se deu por ação de seres malignos, que assim se tornaram por efeito de atraso em sua própria evolução. Sem a ação desses seres, tampouco estaria o ser humano em condições de evoluir, pois permaneceria num estado paradisíaco de pureza inconsciente. Por isso podemos depreender na história da humanidade a manifestação do acompanhamento do Cristo por toda a evolução do ser humano e da Terra, para, por meio de um chamado “cálculo-divino” determinar o momento correto para iniciar o seu processo de resgate. De fato, em outros livros fundamentais da Antroposofia, como a Ciência Oculta [3], Steiner descreve como as culturas pré-cristãs das épocas pós-atlânticas já tinham uma percepção profética da vinda do Cristo, o Ser Solar. Ele sugere que, ao longo das diferentes épocas culturais: hindu, persa, egípto-caldaica, greco-romana, houve uma preparação progressiva da humanidade para esse evento cósmico e espiritual. Steiner afirma que as antigas tradições das escolas de mistério e religiosas eram inspiradas por seres espirituais superiores que transmitiam vislumbres da futura encarnação do Cristo. Isso se manifestava, por exemplo, no culto ao Sol em diversas culturas, como o de Ahura Mazdao no zoroastrismo, Rá no Egito e Apolo na Grécia, todos símbolos do Logos divino que se revelaria plenamente na figura de Jesus Cristo.
Um dos pontos centrais da cristologia de Steiner é a distinção entre Jesus de Nazaré, um ser humano, e Cristo, o Logos divino. Segundo ele, Jesus foi preparado ao longo de sua vida para se tornar o receptáculo de Cristo. Esse processo culminou no batismo no Jordão, quando o "eu" individual de Jesus foi substituído pela presença do Cristo Cósmico. Durante os três anos de sua atuação, Cristo viveu na Terra como um ser divino encarnado, ensinando e transformando a substância espiritual da humanidade até o momento do sacrifício no Gólgota. A ressurreição, nesse contexto, não é apenas um evento histórico, mas uma renovação da própria estrutura humana. Steiner introduz o conceito do “fantoma”: um corpo espiritual puro, isento das influências luciféricas que corromperam a humanidade. Segundo ele, a Ressurreição restaurou esse corpo original, permitindo que a humanidade, por meio da comunhão com Cristo, pudesse superar a degradação espiritual. Essa ideia encontra sua confirmação na vivência de Paulo de Tarso no caminho de Damasco: sua visão de Cristo ressuscitado não foi uma mera aparição, mas a percepção direta dessa nova realidade espiritual.
Um outro evento fundamental nesse processo de redenção do ser humano é a necessidade de um retorno do Cristo, uma segunda vinda. Podemos dizer que nos dois mil anos de desenvolvimento do Cristianismo, tratou-se de cultivar a índole humana e permitir, através das forças do Cristo, o amadurecimento paulatino do Eu, da individualidade humana. A segunda vinda, portanto, não seria um acontecimento semelhante ao primeiro, mas um encontro com o Cristo de forma livre a partir do seu reconhecimento por parte de um eu suficientemente amadurecido para poder livremente fazer essa escolha. Steiner ensina que a segunda vinda ocorreria não no plano físico, mas no plano etérico. Ele afirma que a experiência de Paulo de Tarso no caminho de Damasco é um modelo para esse novo tipo de encontro espiritual, que se tornará cada vez mais acessível à humanidade. Essa experiência não depende de mediações institucionais, mas da evolução individual da consciência. A transformação da percepção espiritual e a abertura ao mundo etérico são requisitos para esse encontro, que se manifesta como um despertar para a realidade do Cristo vivo. Esse encontro se tornou disponível para todos porque, a partir da Ascensão, o Cristo está presente no etérico da Terra, e assim permanecerá, como ele próprio disse: “até o fim dos tempos”.
Steiner diferencia sua abordagem do cristianismo tradicional ao enfatizar que a vivência de Cristo não deve se restringir a dogmas ou práticas externas, mas ser experimentada diretamente na alma humana. Ele contrasta esse caminho esotérico com a estrutura exotericamente rígida da tradição e com o intelectualismo materialista da crítica bíblica moderna, que, em sua visão, obscurece a verdadeira essência espiritual das escrituras. Se tanto o Velho quanto o Novo Testamento são textos que foram recebidos em revelação, ainda que em um período de clarividência atávica, eles fornecem imagens verdadeiras do mundo espiritual, de forma que, uma leitura a partir da ciência do espírito permite reconhecer nessas imagens a realidade, que pode ser compreendida pela alma consciente através de um pensar espiritual.
Ao longo de toda a sua trajetória, a partir da virada dos século XIX para o século XX até a sua morte, Rudolf Steiner proferiu vários ciclos de palestras sobre os quatro evangelistas e também sobre o Apocalipse de João. A soma desses ciclos de palestras, publicados em livros, constitui um rico material que nos permite desenvolver a releitura das escrituras à luz do conhecimento esotérico. Para além delas proferiu também palestras sobre o tão chamado Quinto Evangelho [4], onde ele comenta fatos que, até então, não haviam sido relatados sobre a vida de Jesus, mas que são legíveis no registro akáshico [5], e que corroboram esse papel essencial do Cristo para a evolução do ser humano. Especialmente em seu livro sobre o Evangelho de João [6], encontramos esse Cristo cósmico, o Logos criador. Aquele que reafirma o “Eu sou” sete vezes e, em cada uma, aponta para o verdadeiro Eu humano. Este que ainda não se determinou, mas está, por meio do Cristo, em busca do “si mesmo”. Não é por acaso que reencontramos esse ideal de busca da auto-determinação em sua Filosofia da Liberdade [7]. Aí não se menciona o nome de Cristo, mas podemos depreendê-lo no ideal de liberdade aí caracterizado, pois trata-se justamente do meio pelo qual cada um pode alcançar o seu “Eu sou”.
A transformação interior é, portanto, o eixo central do caminho cristão segundo Steiner. O ser humano deve desenvolver reverência, humildade e esforço contínuo para se abrir à presença do Cristo. Essa ideia ressoa em toda a sua obra, mas particularmente nos ensinamentos práticos apresentados em seu livro Conhecimento dos Mundos Superiores [8], no qual ele não fala especificamente do Cristo, mas que percebemos ser essencialmente cristão, pois funciona como um manual prático para que o indivíduo que assim decida, tome em suas mãos as atitudes e ações para o autodesenvolvimento. Nele a atitude de alma é sobretudo de reverência, humildade e veneração para com Deus e o mundo espiritual. Isso é absolutamente coerente com tudo o que escreveu e falou sobre o Cristo.
Notas e referências bibliográficas
[1] STEINER, Rudolf. Cristianismo como Fato Místico. São Paulo: Editora Antroposófica, (GA 8) 2018 https://www.antroposofica.com.br/prod,idproduto,36724
[2] STEINER, Rudolf. De Jesus a Cristo. Sao Paulo: Editora Antroposófica, (GA 131) 2007 https://www.antroposofica.com.br/prod,idproduto,36810
[3] STEINER, Rudolf. Ciência Oculta. São Paulo. Editora Antroposófica, (GA 13) 2006 https://www.antroposofica.com.br/listaprodutos.asp?idproduto=36787&q=a-ciencia-oculta---esboco-de-uma-cosmovisao-supra-sensorial---rudolf-steiner
[4] STEINER, Rudolf. O Quinto Evangelho. São Paulo. Editora Antroposófica, (GA 148) 2023 https://www.antroposofica.com.br/listaprodutos.asp?idproduto=36811&q=o-quinto-evangelho---rudolf-steiner
[5] Registro Akáshico ou Crônica do Akasha: memória do mundo espiritual, no qual o pesquisador espiritual pode ler os eventos do passado mais distante, não como aconteceram diretamente, mas do lado da experiência interior da alma. Sua leitura exige um desenvolvimento interior específico, baseado em exercícios e práticas espirituais.
[6] STEINER, Rudolf. O Evangelho de João. São Paulo. Editora Antroposófica, (GA 103) 2019 https://www.antroposofica.com.br/listaprodutos.asp?idproduto=6592424&q=o-evangelho-segundo-joao---1--ciclo---rudolf-steiner
[7] STEINER, Rudolf. A Filosofia da Liberdade. São Paulo. Editora Antroposófica, (GA 4) 2022 https://www.antroposofica.com.br/listaprodutos.asp?idproduto=36795&q=a-filosofia-da-liberdade---fundamentos-de-uma-cosmovisao-moderna---rudolf-steiner
[8] STEINER, Rudolf. Como se adquirem Conhecimento dos Mundos Superiores. SÃo Paulo. Editora Anteoposofica, (GA 10) 2023 https://www.antroposofica.com.br/listaprodutos.asp?idproduto=8570963&q=como-se-adquirem-conhecimentos-dos-mundos-superiores----rudolf-steiner
Carlos Maranhão é nascido em São Paulo, tem 64 anos e é pai de uma filha. Formado em Economia pela Faculdade de Economia de São Luís e em Filosofia pela USP, atuou como professor de filosofia no ensino médio da Escola Waldorf São Paulo. Foi consagrado como sacerdote da Comunidade de Cristãos em Stuttgart, em 28/02/2015. Atualmente é sacerdote da Comunidade de Cristãos de Botucatu e de suas filiais em Curitiba e Brasília.