AS ARTES: UMA FORÇA QUE TRANSFORMA O SER HUMANO PARA O BEM DO SEU CONTEXTO SOCIAL
por Michael Mösch
por Michael Mösch
Espírito do mundo, onde tu estás?
No início de 2025 o Goetheanum disponibilizou, a partir desta pergunta, uma sequência de palestras que preparam a celebração do centenário da morte de Rudolf Steiner com o título: ‘Pegadas de um vir a ser’. Ao longo das palestras ficou evidente que a vida de Rudolf Steiner está entretecida de um devir em transformação contínua. Nenhuma afirmação nas suas obras foi definitiva. Por princípio ele não emitiu definições de situações ou acontecimentos. A partir do seu ponto de vista ele empenhou força para oferecer em palestras, artigos e livros uma descrição, caracterização ou representação dos fatos como estímulo para novas descobertas do conhecer. Ele dedicou-se para encontrar nos fatos, determinados pela situação da época em que viveu, os impulsos das suas ações a partir da própria essência. A sua disposição de contribuir de forma proativa com o fluxo existente das necessidades do mundo e das pessoas com quais conviveu, foi inesgotável.
Quais foram as contribuições das artes no exercício das pesquisas e das obras realizadas por Rudolf Steiner? Ao longo de toda a sua vida ele dedicou-se às artes visuais e musicais. Quando jovem ele percebeu que o prazer e a alegria decorrente da contemplação de uma obra de arte são únicos e incomparáveis com a satisfação que provém de outros âmbitos da vida. A sua obra literária que desvenda novos campos de pesquisa em diversas áreas profissionais está permeada e entretecida com qualidade artística. Toda frase, todo pensamento e toda ideia que toca a verdade está igualmente sob a luz do belo. Já em 1888 aos 27 anos de idade, inspirado por Goethe [1], Rudolf Steiner manifesta em uma de suas primeiras palestras públicas a sua relação com o meio artístico. Só conseguimos desvendar as profundezas dos fenômenos quando tivermos a predisposição e a força produtiva de ver na realidade sensória algo mais do que os fatos nos manifestam. Rudolf Steiner desenvolve a ideia de uma ciência do belo a partir da contemplação do reino vegetal na Natureza. O vegetal está inserido num ambiente que sustenta a sua espécie. A espécie é o indivíduo na sua expressão particular e o ambiente é o seu entorno necessário, que estimula e sustenta a existência do indivíduo. O estímulo e a sustentação são a revelação da força vital de característica geral e abrangente. A expressão particular do vegetal revela, a partir de si, uma ideia como potencial presente no ambiente em que vive. A natureza vegetal se configura a partir de uma força que nós conhecemos como vida. Ela predispõe o contexto geral do conjunto ambiental para proporcionar a revelação da ideia do vegetal particular. É preciso se voltar ao devir para poder ouvir o criar da Natureza. Assim tornamo-nos dignos para, a partir da contemplação, participar da contínua força criadora da Natureza, enquanto ela produz.
Para Rudolf Steiner as artes também relacionam uma ideia à força criadora vital da obra. Na arte o artista disponibiliza o seu espírito para empenhar a sua força de vida como um agente transformador do contexto material perceptível. Impulsionado pela ideia, o artista atribui à obra, com a sua força geradora, uma revelação individual de caráter geral. Na Natureza a criação está onipresente nos elementos que compõem o lugar e o indivíduo. O vegetal individual é um caso particular, inserido no todo geral necessário. O artista cria o particular e atribui ao indivíduo o caráter geral para fazer do acaso, o necessário. A Natureza revela uma ideia no vegetal. A arte quer dar à ideia uma forma particular como possibilidade de uma revelação no sensório. Ela revela, na substância material, uma realidade sensória à luz da ideia. Em sua obra o artista eleva o sensório material ao nível da ideia espiritual.
Nas ciências a humanidade também relaciona a matéria substancial e sensória às leis, aos conceitos e às ideias que regem, ordenam e estruturam o mundo dos elementos. Na atualidade existe, para as ciências, entre a realidade física e a ideia espiritual, um abismo intransponível. Entre a realidade material física e o espírito o ser humano precisa de um ‘novo’ reino onde o particular e individual consegue representar a ideia que contém em si o geral, como um contexto pleno e necessário. Esse mundo inexiste naturalmente e precisa ser criado pelo ser humano. Dessa necessidade nascem as artes, um reino necessário como elo entre a realidade sensória e a vivência na ideia.
Qual é a utilidade e a finalidade de uma obra de arte? Nas artes nós nos contentamos exclusivamente com a beleza. O belo está a serviço de uma utilidade entretecida por uma finalidade intrínseca. Nas artes o belo é útil ao exercer a sua finalidade de tocar e estimular os nossos sentimentos de prazer. Ao sentirmos a beleza de uma obra de arte, a utilidade do belo imediatamente se sobrepõe à finalidade de saciar uma necessidade. A forma como a beleza se revela à contemplação está contida no objeto, em detrimento de uma necessidade de compreensão. A arte não quer ser compreendida, a sua carência é querer ser vivenciada. O belo nas artes é útil e ao ser útil exerce o seu fim. Mais de um centenário transcorreu após essas reflexões do jovem Rudolf Steiner, inspirado em Goethe e Schiller [2], sobre a importância e o significado das artes. Mesmo assim, a ciência da estética continua restrita e limitada à descrição de uma história sequencial de estilos artísticos.
Em 1888 Rudolf Steiner também se dedica à obra de Schiller. Muito resumidamente, Schiller propõe que o impulso genuíno do brincar da criança gera um contexto, a partir da realidade, com a finalidade do prazer. A criança utiliza-se da fantasia para sustentar uma imagem representada de finalidade prazerosa. Quando ela brinca ela ordena as coisas com o intuito de gerar alegria e satisfação. Em todo ser humano esse talento, após passar por uma transformação, se estende à idade adulta para proporcionar à alma o prazer no belo. Assim, para Schiller ‘o ser humano de fato, somente é humano, quando brinca e ele brinca somente, quando no pleno sentido da palavra, é humano’. O impulso do brincar é o fundamento arquetípico da criação artística. Esse impulso humano gera obras de existência sensória que pela aparência do belo satisfazem a vivência dos nossos sentimentos. Em nenhuma situação Espírito e Natureza se sobrepõem. Nas artes essa sobreposição da substância natural elevada ao nível do espírito se revela na aparência do belo. Na arte o belo não é uma incorporação do espírito (ideia), porém uma reestruturação de elementos do sensório, que na beleza da composição, nos satisfaz. Assim o belo é uma aparência sensória material na forma possível do espírito. Seu conteúdo é sensório, a forma, o jeito e a maneira como esse conteúdo se revela, é ideal.
É surpreendente como Rudolf Steiner considerava seriamente o potencial das pessoas com as quais conviveu e trabalhou ao longo da sua vida. A humanização das pessoas alimentou o seu encanto. Formalmente ele não se escolarizou em artes. Nas artes, o seu caminho foi um processo autodidata a partir do seu fascínio e interesse genuíno. Logo cedo Rudolf Steiner reconhece a importância das artes para o desenvolvimento e bem-estar da humanidade. Ao escrever sobre a teoria do conhecimento de Goethe, quando tinha apenas 25 anos de idade, a seriedade da disposição artística para o progresso das ciências em geral, desperta em Rudolf Steiner. Ciência na exclusão das artes está condenada à própria falência, no materialismo. O belo nas artes é esplendor do espírito e proporciona vida à aquisição do conhecimento.
1888 pode ser considerado o início para Rudolf Steiner do desenvolvimento de um pensar sobre o conteúdo da arte, revelado como essência espiritual, pela forma da obra criada. Em 1896 ele assume a tarefa da editoração da revista ‘Die Kommenden’, um magazine de literatura. Nesse periódico ele consegue dar ‘palavra’ à arte da literatura. É a época em que ele também se volta intensamente ao teatro que marca o seu início de como, por meio das artes, nós podemos trazer a ciência espiritual para a vivência anímica. Em uma carta à Marie von Sievers [3], Rudolf Steiner apresenta a sua intenção de criar formas artísticas como expressão da vida anímica. Ele percebe que, uma época incapaz de reconhecer a importância da arte, pode projetar o espírito à insignificância. A partir do momento que o ser humano adquire experiências vivas das formas e expressões artísticas, a matéria, na ausência de espírito, cessa de existir. Com a arte a humanidade consegue religar a matéria ao espírito e matéria se torna repleta de conteúdo e significado.
Em 1907 o Congresso anual da Sociedade Teosófica realizado em Munique, esteve entretecido de arte como meio que conduziu os espetadores a vivências sobre o espírito. A arte estimula a vivência do sentir e desencadeia a transformação do pensar cotidiano e intelectual para o pensar vivo como início de um caminho do autoconhecimento do ser humano. Nessa ocasião o caminho do autoconhecimento foi apresentado em sete passos:
1. O estudo e a assimilação da vida em pensamentos, o pensamento puro;
2. A imaginação, a edificação de representações em formas de imagens;
3. A inspiração, assimilar a linguagem oculta;
4. A intuição, o pensar se transforma em força da vontade;
5. A correspondência entre micro- e macrocosmos;
6. O despertar do Eu no macrocosmo;
7. Bem-aventurança espiritual.
Nesse percurso a arte é uma expressão vivencial no caminho do autoconhecimento do ser humano, na travessia da matéria e ao espírito.
Em Munique, Rudolf Steiner inicia a sua atividade nas artes cênicas com apresentações de suas obras teatrais dos ‘Dramas de Mistérios’, cujos textos foram redigidos enquanto estavam sendo encenados no palco, principalmente por pessoas leigas. Para ele o que importava era a disposição da pessoa querer expressar-se artisticamente. Ele assumiu a edição dos textos dos dramas, toda a encenação, a direção e iluminação como também os trajes do elenco. Em 1910, mais uma vez com pessoas leigas, Rudolf Steiner inicia a euritmia, uma arte cênica nova como forma de expressão de qualidades etéricas da música e da palavra. Em 1913 a euritmia foi integrada às apresentações dos ‘Dramas de Mistérios’, o mesmo ano do início do projeto do auditório do 1⁰ Goetheanum em Dornach na Suíça. A execução da obra teve início em 1913, como espaço público para as atividades culturais do movimento antroposófico na Europa, destinado a 900 expectadores. Igualmente, como em situações anteriores, Rudolf Steiner admite um grande grupo de pessoas leigas para a execução de uma obra escultural esculpido em madeira. Para a humanidade o 1⁰ Goetheanum foi um grande exemplo de uma ‘obra de arte total’, que congrega em um único objeto todas as três artes visuais, a arquitetura, a escultura e a pintura. Seu contexto artístico relacionava o usuário da obra ao caminho de desenvolvimento de si próprio, quando se deparava, envolto pela arte tríplice. Movimentos esculpidos na madeira das bases, dos capiteis e arquitraves das colunas sustentadoras, expressavam na sequência de uma metamorfose, a transformação da Terra e do ser humano. Não havia simbologia nas formas. Todo gesto, todo movimento e toda expressão foi impulsionado a partir de uma vontade e uma disposição artística. A obra do 1⁰ Goetheanum perdeu-se às chamas na passagem de ano de 1922 a 1923.
Imediatamente após o incêndio, Rudolf Steiner começou a empenhar-se com o projeto do 2⁰ Goetheanum, uma obra estruturada em concreto armado. A planta baixa do auditório para 1.000 espetadores é um trapézio que se abre em direção ao palco voltado ao Sol nascente. Essa forma de espaço foi inédita na história da arquitetura e remete o usuário do espaço, mais uma vez à vivência de uma ‘obra de arte total’, que estimula ao impulso progressivo do desenvolvimento da alma humana no seu processo de autoconhecimento.
Na vida cultural, uma existência humanamente digna não pode ser pensada na ausência de impressões artísticas. Nas artes, a substância material sensória é elevada ao nível do espírito, pelo impulso do indivíduo humano, de querer expressar-se artisticamente. Assim a arte em todas as culturas humanas quer ser uma ponte que relaciona matéria e espírito com a intensão de acessar as condições possíveis para o indivíduo humano de conhecer-se para proporcionar o progresso da evolução de si próprio e do mundo. A Antroposofia pode ser compreendida como um apelo para permear o nosso pensar intelectual com uma disposição artística. A arte no pensar transforma o intelectualismo em um apreender artístico. A partir desse apreender artístico podemos desenvolver o artístico como princípio do conhecimento na capacitação do pensar vivo. Somente o pensar vivo nos oferece um esteio seguro na busca do autoconhecimento e por meio dele, ao conhecimento sobre o suprassensível espiritual em nós e no mundo.
Referências bibliográficas
[1] GOETHE, Johann Wolfgang von. 1749-1832 - 9/11/1888, Goethe als Vater einer neuen Ästethik.
[2] SCHILLER, Friedrich. 1759-1805, Über die ästhetische Erziehung des Menschen.
[3] SIEVERS, Marie von. 1867-1948, atriz e segunda espessa de Rudolf Steiner.
GA 271: Rudolf Steiner, Kunst und Kunsterkenntnis – Grundlagen einer neuen Estethik, 1985, Rudolf Steiner Verlag, Dornach/Schweiz.
Goetheanum TV: Pieter van der Ree, Der Kunstimpuls Rudolf Steiners, 14.Februasr 2025.
Goetheanum TV: Walter Kugler, Weltgeist wo bist Du, 31. Januar 2025.
Michael Mösch tem graduação bacharelado e mestrado em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Técnica de Delft 1977/78 a 1985, na Holanda. Possui doutorado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo UNICAMP em 2006 a 2009. É diretor da MEM-Arquitetura Ltda em Botucatu-SP. De 2010 a 2015, foi secretário-geral da Sociedade Antroposófica no Brasil. A partir de 2015 é coordenador e Professor da Faculdade de Arquitetura Galileu em Botucatu-SP.