IMPULSOS PARA O FUTURO COMO LEGADO DE RUDOLF STEINER - EM MEMÓRIA DOS 100 ANOS DE SUA MORTE
por Rogério Y. Santos
por Rogério Y. Santos
Segundo Rudolf Steiner, podemos estabelecer uma relação com os falecidos criando uma atmosfera em comum, uma espécie de “ar anímico” que pode ser respirado em ambos os lados do limiar da morte. Esse “ar anímico” se forma quando se desenvolve dois sentimentos na alma daqueles que vivem na existência terrestre: o sentimento de gratidão e o sentido de comunidade no ambiente com o qual se está ligado carmicamente [1].
Podemos desenvolver um enorme sentimento de gratidão a Rudolf Steiner quando trazemos à consciência os impulsos deixados por ele para o futuro, especialmente em seus últimos anos de vida. E podemos ampliar essa consciência para o sentido das nossas tarefas aqui na Terra, quando surge o sentimento de conexão cármica com aqueles com os quais atuamos em prol dos ideais deixados por ele, e que encontramos em nós mesmos.
Para melhor compreender o significado desse esforço de Rudolf Steiner em deixar estímulos para o futuro, podemos voltar o olhar aos eventos que antecederam a tragédia da queima do 1º Goetheanum, o magnífico edifício esculpido em madeira que trazia na vivência de suas formas a síntese do conhecimento sobre a essência e o caminho de desenvolvimento cósmico do ser humano.
Naquela época, a Sociedade Antroposófica, que fora instituída em 1912/13, vivia grandes conflitos, tanto nos círculos ligados à antroposofia, quanto no ataque de detratores de Rudolf Steiner e de inimigos da antroposofia. Também contribuía o conflito geracional entre os membros mais antigos, que acompanhavam Rudolf Steiner desde os tempos da seção alemã da Sociedade Teosófica, portadores de um pensamento mais enrijecido, e os jovens imbuídos de sérias perguntas sobre o futuro, naquele período trágico da Primeira Guerra Mundial. O enfraquecimento espiritual da Sociedade Antroposófica proporcionado por esses conflitos abriu, segundo ele, caminho para o incêndio criminoso que acometeu o edifício na noite de São Silvestre de 1922/23.
O ano que se seguiu ao incêndio foi de intensas reflexões de Rudolf Steiner, junto aos seus círculos mais próximos, sobre o sentido e o papel da Sociedade Antroposófica. Partindo dessas reflexões, ele toma a séria decisão de refundar a Sociedade Antroposófica no Congresso de Natal de 1923/24, e de reconstruir um novo edifício, agora em concreto, no mesmo local daquele que fora consumido pelas chamas. Rudolf Steiner assume a presidência da nova Sociedade Antroposófica Geral, posição que ele não exercera anteriormente, e forma sua primeira diretoria com seu círculo mais íntimo de colaboradores. Como esforço de tornar universal a atuação da Sociedade Antroposófica, ele continua a empreender viagens para estimular a formação de Sociedades territoriais.
Para fortalecer o sentido dessa refundação como força de renovação, Rudolf Steiner traz no Congresso de Natal os versos mântricos da Pedra Fundamental, exortando os antropósofos a participarem ativamente dessa nova Sociedade Antroposófica colocando essa Pedra Fundamental, agora no âmbito das palavras, em seus corações.
Rudolf Steiner passa então a trabalhar intensamente para formar a base dessa nova Sociedade Antroposófica. Ele institui a Escola Superior para Ciência do Espírito e funda com ela as Seções que se tornam responsáveis pelos campos de atuação antroposófica na vida prática. Com isso, ele concretiza aquilo que já dissera em uma das primeiras cartas aos membros após o Congresso de Natal: “Mesmo que antroposofia tenha suas raízes, em especial, nos conhecimentos já obtidos no mundo espiritual, essas são apenas suas raízes. Seus ramos, suas folhas, suas flores e seus frutos prosperam em direção a todos os campos da vida e do agir humano” [2].
Instituindo a primeira de três Classes que formariam o caminho esotérico da Escola de Micael, Rudolf Steiner reúne os membros da Sociedade Antroposófica, que assumem a responsabilidade de serem os representantes da antroposofia perante o mundo, para ouvir as aulas dessa primeira Classe. As chamadas ‘Aulas da Classe’ formam também a base de conhecimento esotérico que deve fluir para os campos de atuação prática conduzido pelas Seções da Escola Superior de Ciência do Espírito.
Ainda em 1924, Rudolf Steiner profere o grande ciclo de 82 palestras cármicas [3], escreve com a Dra. Ita Wegman a obra Elementos fundamentais para uma ampliação da arte de curar segundo os conhecimentos da ciência espiritual [4] e ministra o curso de medicina pastoral [5] para médicos e sacerdotes da Comunidade de Cristãos, cuja fundação ocorrera dois anos antes mediante sua orientação. Aos sacerdotes profere o ciclo de palestras sobre o Apocalipse de João [6]. Ele realiza em junho o curso de agricultura biodinâmica [7] e o curso de pedagogia terapêutica [8], e em setembro o curso de arte da fala e arte dramática [9], instituindo mais três importantes impulsos para a criação de Seções.
No dia 28 de setembro de 1924, já bastante adoecido, Rudolf Steiner profere diante de 1000 pessoas reunidas na marcenaria, sua última palestra pública, que precisou encerrar por falta de forças. Nessa palestra, dedicada à Micael e que ficou conhecida como sua ‘Última alocução’ [10], ele descreve a passagem na vida entre a morte e um novo nascimento da individualidade de Rafael-Novalis, tocando no mistério do encontro das duas correntes representadas por João Batista e João Evangelista, e afirmando a importância de o poderoso pensamento de Micael ser apreendido por um certo número de almas humanas, ao dizer: “Isso poderia representar uma das mais belas conquistas da interpretação antroposófica dos sinais dos tempos”. Ao encerrar essa última palestra pública, ele traz os versos mântricos da Imaginação de Micael [11]. Poderia-se afirmar que Rudolf Steiner dedicou sua última palestra pública ao despertar de almas para uma consagração da atmosfera de Micael.
Até o momento de sua morte, mesmo com suas forças vitais cada vez mais enfraquecidas, Rudolf Steiner continuou a trabalhar intensamente, sempre amparado pelos seus colaboradores mais próximos, para deixar estímulos para o futuro. Um dos esforços mais significativos empreendidos por Rudolf Steiner desde os primeiros dias após o Congresso de Natal até bem próximo à sua morte, foi realizado sob a forma de cartas aos membros e de pensamentos que ele condensou naquilo que denominou diretrizes antroposóficas [12], como caminho de conhecimento da antroposofia, dedicando uma parte significativa das cartas e diretrizes ao Mistério de Micael, por meio das assim chamadas cartas micaélicas.
Albert Steffen, que visitava regularmente Rudolf Steiner durante sua doença, relembrou desta vez: “Visitei-o em 28 de março às 17h da tarde em seu estúdio, onde ele estava deitado em seu leito de doente. Era uma sala alta com claraboias. Nada da terra olha para dentro: nenhuma árvore, nenhuma montanha, nenhuma casa, apenas a luz dos céus. Modelos escultóricos e arquitetônicos colocados por ele mesmo nas prateleiras, junto com alguns bustos que ele esculpiu; aos pés de sua cama, a nobre estátua de Cristo, esculpida por sua própria mão, paira alto acima dele. Ao redor dele há mesas cobertas de livros e manuscritos... Até o último dia de sua vida, seu interesse era pelo mundo inteiro. Em seu estúdio, que ele não havia deixado por metade do ano, ele havia coletado uma biblioteca inteira.” (Goetheanum, 1925)
Rudolf Steiner falece em 30 de março de 1925.
Referências bibliográficas
[1] STEINER, Rudolf. GA 181, 7ª conferência, Berlim, 26/3/1918.
[2] STEINER, Rudolf. GA 260a, primeira carta aos membros, 13/1/1924, no boletim informativo Das Goetheanum.
[3] STEINER, Rudolf. Observações esotéricas de relações cármicas, em seis volumes (GA 235-240), publicados em 2023-24 pela ed. Antroposófica, tradução de Sonia A. L. Setzer.
[4] STEINER, Rudolf. GA 27, publicado em 2020 pela ed. Antroposófica, tradução de Sonia A. L. Setzer.
[5] STEINER, Rudolf. GA 318, Das Zusammenwirken von Ärzten und Seelsorgern. Pastoral-Medizinischer Kurs (O trabalho conjunto de médicos e pastores. Curso de medicina pastoral).
[6] STEINER, Rudolf. GA 346, Vorträge und Kurse über christlich-religiöses Wirken, V. Apokalypse und Priesterwirken (Palestras e curso sobre o trabalho religioso-cristão, volume V. Apocalipse e ofício de sacerdotes).
[7] STEINER, Rudolf. GA 327, Fundamentos da Agricultura Biodinâmica, ed. São Paulo: Antroposófica, 2017, tradução de Gerard Bannwart.
[8] STEINER, Rudolf. GA 317, Heilpädagogischer Kurs (Curso de pedagogia curativa).
[9] STEINER, Rudolf. GA 282, Sprachgestaltung und Dramatische Kunst. Dramatischer Kurs (Curso de arte da fala e arte dramática).
[10] Veja um resumo desta ‘Última alocução’ de Rudolf Steiner, publicado na edição de setembro de 2024 do ECOS.
[11] Os versos da Imaginação de Micael encontram-se no já citado resumo da ‘Última alocução’.
[12] Também conhecidas como ‘máximas antroposóficas’. Foi publicado recentemente uma nova edição do GA 26, bastante ampliada (Steiner R. Anthroposophische Leitsätze, ed. Basel: Rudolf Steiner Verlag, 12ª edição 2024), contendo agora cartas aos membros que em parte constam no GA 260a, e que agora são colocadas em relação às diretrizes. Esta nova edição do GA 26 está sendo traduzida para publicação pela ed. Antroposófica. As cartas aos membros que constam no GA 260a foram publicadas em 2024, com tradução de Sonia A. L. Setzer.
Rogério Y. Santos é atualmente um dos três secretários-gerais da Sociedade Antroposófica no Brasil, para o período de 2022-2029.