O ACESSO À VERDADE É A CHAVE
por Mariana Azoubel
por Mariana Azoubel
O mundo de hoje é complexo, porém incompleto.
Um minuto de pausa. Releia a frase acima. Deixe que ela seja digerida. Como ela soa pra você?
Quando me pediram para falar sobre a prevalência da inverdade nos tempos atuais, logo pensei nessa frase. A ideia dela parece sintetizar muito do que temos enfrentado como dilemas da atualidade, incluindo o do mundo virtual. Vamos adentrar nela para compreendê-la e refletir qual seria a solução para um mundo complexo e completo.
A escolha do adjetivo “complexo" parece quase intuitiva e natural. Talvez não fosse nem preciso discorrer e defender esse ponto, é como se todos nós já soubéssemos de sua veracidade por vivenciá-la em nosso dia a dia. Mesmo assim, vamos esclarecer, por que “complexo”? Porque a quantidade de demandas, tarefas e informações é cada vez maior. Parece cada vez mais difícil (senão impossível) administrar todos os itens listados na agenda. A verdade é que nos vemos imersos em um dia a dia de contínuas frustrações por não termos feito tudo aquilo que estava proposto - mesmo quando temos uma excelente organização.
No entanto, apesar de tantas coisas preenchendo a rotina, ainda assim o ser humano se sente incompleto - assim como a humanidade. Incompleto, porque todas essas informações têm seu foco num ponto de vista material. Elas buscam incessantemente compreender o ser humano e o mundo, mas não percebem que se limitam apenas a uma parcela destes - a parcela aparente. Ou seja, aquilo que é essencial, que é fundamental para que se compreenda o todo e se sinta a completude, não está em nosso dia a dia. Não está nos jornais, nas revistas, nas redes sociais, no sites de notícias, nas rodas de conversas e nas faculdades. Em todos esses, vemos apenas o ser humano material, aquilo que o torna apenas mais um número, que o torna indiferente, que o torna desumano. A materialidade por si mesma é desumana, o que a humaniza é aquilo que é individual, que é único ao mesmo tempo que é o todo. O que humaniza é ser humano por completo. É ser corpo, mas também alma e espírito. É o que permite que cada um se sinta único, ao mesmo tempo que se sente pertencente.
Inevitável é que a humanidade busque pela completude. Por não a ter encontrado, surge o sentimento de solidão e de vazio. Diante disso, emergem as mais diversas formas de entorpecimento, como uma tentativa de abafar essas expressões internas da verdade. Vemos o álcool e drogas ganharem espaço desde a adolescência e as reconhecemos claramente como entorpecentes, mas temos outros mais sutis, como as redes sociais e programas de streaming que invadem sem nem serem notados. Pode-se optar até mesmo por “sair” do mundo em que vivemos e passar a maior parte do tempo em um mundo virtual, portanto irreal, onde inclusive podemos ser completamente diferentes do que somos aqui - um sinal do quão urgente é reencontrarmos o que é verdadeiro e humano.
O caminho mais fácil seria julgar essas atitudes e criações, mas o mais fácil não é o que costumamos fazer na Antroposofia, não é mesmo?! Procuramos pela verdade e pelo amor. Até porque, nós também estamos nesse barco. Então ao invés de julgar e dizer que os jovens de hoje estão perdidos ou que o mundo de hoje está perdido, vamos pensar no que poderíamos fazer para melhorar essa situação? Com certeza, muitas soluções podem ser encontradas. Quais seriam algumas das contribuições que a ciência espiritual poderia trazer?
Como a antroposofia poderia contribuir com um mundo em que a inverdade está tão presente, em que não conseguimos saber se um vídeo é real ou não; em que os filtros e procedimentos estéticos se tornaram o padrão de corpo humano; em que temos boneca de bebês que de longe parecem seres humanos; em que poderíamos criar uma versão completamente diferente de nós mesmos e viver através dela no mundo virtual; em que acostumamos com o fato de nunca podermos confiar completamente nas informações que recebemos?
Acredito que se é essa a realidade que temos, então é com ela que devemos lidar. A ciência espiritual tem muito a contribuir, uma vez que se propõe a compreender o ser humano em sua complexidade e completude. Sua proposta é partir do âmbito material, mas não se deter nele. Ou seja, pode contribuir com a peça faltante do quebra-cabeça e completá-lo: o âmbito espiritual. Através da reconexão com o conhecimento de que o ser humano é um ser material, anímico e espiritual, conseguimos trazer a completude, a sua imagem real e assim atuamos no vazio e na solidão explicados anteriormente.
Isso é fundamental, caro(a) leitor(a). A antroposofia nos ajuda a atuar na base dessa questão fundamental da humanidade e transformá-la. Não conseguiremos enfrentar o desafio das inverdades e dos entorpecimentos, evitando-os e nos retirando dessa realidade - até poderíamos fazer isso, mas não estaríamos cumprindo o papel da antroposofia de contribuir com a evolução da humanidade. É claro que isso não significa dar celular para crianças. Significa que por saber do que a criança precisa vamos evitar ao máximo o contato precoce com telas, mas e ao mesmo tempo damos a ela o subsídio para o fortalecimento de sua individualidade e completude, para que quando ela precise lidar com telas na sua vida jovem e adulta, ela esteja preparada para isso.
Um exemplo prático da contribuição antroposófica com adultos é que se poderia lidar melhor com a quantidade de notícias a que se expõem no dia a dia e com o uso do celular, se souberem que o ritmo é fundamental para a sua saúde e que o ritmo acelerado das redes sociais e das notícias leva a um desequilíbrio interno promovendo maior desgaste, ansiedade e cansaço crônico. Sem a consciência disso, os intervalos de trabalho, os ônibus, metrôs e carros, os momentos de lazer, todos eles são tomados por aquilo que é mais fácil: uma aparente anestesia, que na verdade é uma enchente de estímulo que afoga a autoconsciência. Sem ter uma base firme na realidade e nas consequências das escolhas, o ser humano não consegue ter força para enfrentar aquilo que o invade e o tira de si mesmo. Se estimularmos um caminho de conhecimento, momentos de pausas, de meditações, de auto-observação e etc. se tornam parte desse caminho . Ou seja, a exposição àqueles estímulos naturalmente vai mudar, pois além da consciência, também damos medidas práticas para a mudança de rotina e fortalecimento interior.
Podemos refletir também sobre filtros e procedimentos estéticos. Dentre os diversos fatores que estão por trás deles, podemos perceber a necessidade de pertencimento e autoaceitação, que se baseiam na ideia de um padrão coletivo ao invés da primazia da individualidade. Por isso é fundamental o desenvolvimento da consciência espiritual, que ao invés da ideia de padrão e de todos serem iguais, irá fortalecer a ideia de que cada ser humano tem suas qualidades e seus desafios e que cada um contribui para o mundo de uma forma especial. É urgente o fortalecimento das individualidades e das particularidades. Calma, isso não leva a uma cultura individualista e mesquinha, muito pelo contrário. Estaremos criando a consciência coletiva, pois cada um irá se reconhecer e reconhecer os outros. Quando uma pessoa aprende a ser ela mesma, ela aprende a respeitar o outro naquilo que ele é e assim torna-se mais provável e possível de se trabalhar com as diferenças, formando um verdadeiro coletivo. Esse fortalecimento pode se dar em qualquer idade, desde a infância em escolas, mas também na fase adulta em consultórios, grupos de estudos e encontros.
Certo, mas depois de tudo isso, ainda não está claro como fazê-lo. A antroposofia pode apontar um caminho, e quais ações podem ser feitas nessa direção? Talvez de um modo bem simplista, posso começar com uma ação que, a meu ver, resume tudo: falar.
Acredito que a antroposofia é uma resposta para a necessidade do mundo de encontrar a completude, a reconexão com o espiritual. Então precisamos falar mais sobre ela, para que as pessoas possam saber que ela existe e seguir um caminho dentro dessa ciência. Esse é um pequeno grande passo, pois é o que dá início ao acesso à verdade do ser humano completo, que vai sustentar e fortalecer a pessoa diante dos desafios da inverdade.
Temos dois grandes ramos do falar. Ele pode ser feito de modo estruturado e profissional dentro de empresas, de instituições, de ONGs, de escolas, de hospitais, de em pesquisas científicas e de estudos - o que é ótimo e devemos nos empenhar nele cada vez mais. Também pode ser feito em nosso dia a dia, quando estamos com família, amigos, conhecidos, colegas de trabalho, quando estamos em cursos, congressos e viagens.
O primeiro caminho é fundamental e poderíamos detalhar cada um dos itens citados, de acordo com cada profissão teríamos diversos ramos. No entanto, gostaria de me ater ao segundo, aquele que é o mais próximo de todos e que pode ser realizado sem nenhum pré-requisito ou grande mudança de vida.
Talvez nós não permitamos que as pessoas ao nosso redor saibam daquilo que nos faz bem, e tampouco naquilo em que acreditamos. Talvez por vergonha, por medo de ser julgado, por crenças religiosas, não importa. O que quero dizer, é que talvez um “simples" gesto como compartilhar suas ideias, seus aprendizados, sua forma de ver o mundo, possa ser exatamente aquilo que a outra pessoa também está buscando, ou um indício de que algo nesse sentido existe. Ainda que o caminho dela não seja a antroposofia, a chama da realidade espiritual pode ter acendida. Sei que isso parece pouco, que parece bobagem e que a maioria das pessoas ao nosso redor aparentemente não quer ouvir o que temos a dizer, mas aí também se mostra um outro desafio fundamental que podemos tentar superar: como levar ao outro aquilo que nos faz bem, dentro das crenças e necessidades dele? Podemos tentar buscar o que vai interessar a ele, o que vai fazer sentido para abrir as portas e não criar barreiras. Acredito que grandes transformações são feitas de pequenos passos sendo dados por várias pessoas e esse é um deles.
Nós não podemos controlar o que as pessoas farão a partir do contato com esse conhecimento, mas podemos dar a chance desse encontro acontecer. A partir daí, não sabemos os desdobramentos, no entanto a nossa fala (ou escrita) pode ser o início de algo fundamental para mudar a realidade dessa pessoa. Quanto impacto teria se acreditássemos realmente na potência dessas conexões?
O mundo de hoje é complexo e pode, além disso, se tornar completo. Em meio a tantas inverdades, dúvidas e incertezas, o conhecimento espiritual traz a verdadeira consciência de nós mesmos e da realidade que nos cerca, permitindo vê-la de outra forma e assim tomar novas decisões. O conhecimento é então a melhor ferramenta para combatermos a inverdade e fortalecer a resistência perante o que não é humano. Proporcionar o contato com a antroposofia se mostra tarefa fundamental e urgente para os nossos dias. Apesar de simples, um dos modos de realizar isso é através da fala, compartilhando esse saber e o impacto dele em nossas vidas. Que possamos ser ponte para o encontro com a ciência espiritual.
Mariana Azoubel nasceu em 1990, em São Paulo/Brasil, gêmea de Rafael. Cursou medicina na FAMECA (2011-2016), se especializou em Clínica Médica na FAMERP ( 2017-2019). Realizou sua formação em medicina antroposófica na ABMA (2018-2020) e desde então se dedica às consultas e ações relacionadas à comunicação da antroposofia para pessoas que não são antropósofos - com coordenação de grupo de estudo para pais de Escola Waldorf, palestras online e cursos autorais. Em 2023 foi coordenadora do curso de introdução e do curso de aprofundamento em antroposofia da Sociedade Antroposófica no Brasil.