SEXUALIDADE HUMANA: PONTOS DE PARTIDA PARA UMA VISÃO ANTROPOSÓFICA NA ATUALIDADE
por Michael Yaari
por Michael Yaari
A importância do tema
A sexualidade humana é uma realidade que se estende profundamente em toda a vida contemporânea. Está em todas as realidades de criação de subjetividade, permeando a cultura e determinando modos de ser e estar como nunca.
É presente extensamente hoje nas políticas, seja nas atuais demandas no campo do identitarismo principalmente relacionadas aos movimentos LGBTQIA+ e feminista, seja no enfrentamento das questões ligadas à violência – vamos lembrar que o Brasil é um dos campeões mundiais de feminicídio – seja na percepção pública de que esta questão merece importância no ganho de consciência.
Como parte da educação, a sexualidade ganha formas de preocupação intensas de pais e professores. É mais fácil uma criança receber uma resposta confusa a uma pergunta simples do que o contrário. Por que é tão difícil falar com crianças e adolescentes sobre sexualidade?
O fato é que vivemos em uma sociedade profundamente erotizada e sexualizada. A moda, as artes plásticas, o cinema, a música, o design e a estética estão atravessados por expressões sensuais eróticas apelativas, algumas vezes mais sutis e outras mais intensas e diretas. Quando ligada ao marketing e a propaganda aí então a influência é ainda maior. Há toda uma indústria de produção de desejo voltado a venda de toda sorte de produtos, desde a criação do design dos carros até a apresentação dos pratos em restaurantes da alta gastronomia. Toda essa indústria está baseada em estudos de neuropsicologia que estudam formas de prender a atenção e seduzir os desejos direcionados à compra e ao consumo. Está lá. Imiscuída, presente. “Ela, a sexualidade”
Pior ainda é o fenômeno da pornografia. Só os muitos incautos para pensar a pornografia como recurso interessante para acender, reacender ou apimentar qualquer relação. Ledo engano! Temos certeza de que a pornografia é extremamente prejudicial ao ser humano de várias formas. Discutiremos um pouco a seguir.
Mas há também a dimensão individual da sexualidade como forma de experimentação dos prazeres através do corpo e como experiencia e ganho de potencial de intimidade. Sendo uma forma de desenvolvimento de capacidade de vínculo afetivo e maior maturidade emocional.
E há, ainda, a sexualidade como tabu. Em pleno século 21 temos a sexualidade, a morte e o dinheiro como tabus que incomodam. Falar desses temas abertamente em nossas rodas sociais ainda constitui desafio claro. Não faz parte da vida social cotidiana. É fácil “estragar” uma conversa se alguém fala de como gostaria de morrer ou quanto de dívida se tem no banco, ou o quanto recebe no seu trabalho.... e a sexualidade então? Podemos falar sobre isso de modo tranquilo? Acho que ainda não.
De modo que a importância atual do tema é imensa.
O que a Antroposofia tem a ver com isso?
Obviamente tudo! E consciência é a palavra. Consciência é a questão.
Sexo vem de seccare, dividir, separar, seccionar. Sexualidade é saber-se separado, dividido e é ao mesmo tempo a experiencia da busca de uma religação, de uma complementação para estarmos novamente reunidos em uma realidade ambivalente única.
O que une os polos?
Para Steiner a realidade da sexualidade está absolutamente ligada ao desenvolvimento da Antropogênese e da Cosmogênese. Em seu livro “A Crônica do Akasha”, dedica todo um capítulo para explicar que o ser humano atual é muito diferente de tempos remotos. E a divisão em sexos foi uma necessidade cosmogônica essencial para o desenvolvimento do ser humano que conhecemos hoje. Nosso planeta estava em uma fase chamada de Lemúria e ainda era de certa forma líquido, bem menos denso que a atualidade. E os humanos nessa época eram constituídos por ambos os sexos. Éramos andróginos, tendo o masculino mais ligado à vontade e o feminino mais ligado às representações mentais. Fazíamos autofecundação quando reproduzíamos outro ser humano e estávamos integrados em um mesmo ser. Mas a direção evolutiva fez com que essa densidade se tornasse cada vez maior e mais intensa determinando a necessidade de separação, seccionando o ser humano em duas realidades complementares, homem e mulher.
Como consequência desse movimento inexorável evolutivo surge um novo órgão mais afim à terra e mesmo assim capaz de, como uma antena, perceber os pensamentos divino espirituais. O encéfalo! O cérebro e todos os seus anexos são uma consequência criativa da densificação dos corpos e da divisão em sexos masculino e feminino.
O que é o pensar? É a força da fecundação e da reprodução tornadas vitalidade do pensamento! As forças da reprodução são as forças da reflexão! Uma mais quente e profundamente caótica e dinâmica e outra mais fria e profundamente estática e luminosa. A reflexão é a reprodução transformada, metamorfoseada!
Isso inclusive se evidencia na embriologia. No mesmo instante em que há a secção das gônadas determinando 2 testículos ou 2 ovários, há a secção das duas foices cerebrais, determinando cérebro esquerdo e cérebro direito.
“No coração tece o sentir
Na cabeça luze o pensar
Nos membros vigora o querer
Luzir que tece
Tecer que vigora
Vigorar que luze
Eis o ser humano
Ecce Homo, Rudolf Steiner
Aqui há a revelação de um mistério. Existe uma ligação entre as forças da reprodução e as da representação. Existe uma ligação entre como amadurecemos na sexualidade, como exercemos a libido e suas derivações e como processamos os pensamentos. E a consequência deste jogo maravilhoso é a maneira com que nos relacionamos na vida social. Uau! A vida social pode ser o resultado desta intrincada dinâmica entre as forças da sexualidade e as forças da formação e processamento dos pensamentos!
Para Steiner a saúde da vida social depende desta dinâmica maravilhosa. Uma condução sábia das forças da libido pode desenvolver sabedoria nos pensamentos e, inversamente, a qualidade dos pensamentos, seu conteúdo espiritual altivo, sua fecundidade e seu processamento luminoso pode direcionar para uma libido criativa, salutogenética e lúdica.
De maneira que a forma como conduzimos a educação sexual na infância e na adolescência e a forma como conduzimos a auto educação sexual a partir da idade adulta acaba por determinar em certo grau – muito mais do que imaginamos – a vida social de uma comunidade!
Sexualidade e os 3 primeiros setênios
No primeiro setênio não há para Steiner uma sexualidade propriamente dita. Do ponto de vista da quadrimembração do ser humano (corpo físico, corpo etérico, corpo astral e Eu) a criança ainda não desenvolve em si os efeitos do corpo astral, corpo este responsável pelo amadurecimento e funcionamento do complexo e maravilhoso sistema endócrino humano. Neste setênio a criança vive o crescimento e desenvolvimento intenso do corpo físico impulsionado pelo corpo etérico, fazendo florescer em primeiro lugar o sistema neuro sensorial. A criança é um ser sensorial de 0 a 7 anos.
O que poderia ser entendido como sexualidade nesta fase, mas não é, são os prazeres que a criança experimenta através do conhecimento e exploração do corpo físico preenchido de plena vitalidade. Um bem-estar imenso. Deste ponto de vista sensorial há prazer, mas não com significação erótica sensual. E aqui é que está a diferença fundamental do entendimento da sexualidade infantil para outros tantos autores, principalmente a corrente psicanalítica. Sigmund Freud e seus seguidores entendem tudo isso de maneira bem diferente. É importante pensar em como a cultura freudiana, digamos assim, influencia hoje esse entendimento e pode deturpar o que jamais poderia ser deturpado.
É fundamental que nos aprofundemos neste tema, pois a saudável condução nos levará a muitos questionamentos extremamente pertinentes em relação à influência dos adultos na interpretação das expressões de prazer corporal das crianças. Este é o nó.
E isso é urgente pois necessitamos livrar as crianças dos abusos sexuais de toda sorte, sejam estes físicos, sejam estes psíquicos ocorridos por uma falta de autoeducação dos adultos! Deixemos claro mais uma vez que a força inexorável do crescimento e desenvolvimento das crianças se chama imitação!
Já no segundo setênio a complexidade aumenta. O corpo etérico agora cresce e amadurece impulsionado pelo corpo astral e isso faz amadurecer o sistema endócrino. Nos meninos isso se dará a partir dos 9 anos com aumento do volume dos testículos, aumento do pênis, surgimento dos pelos pubianos, engrossamento da voz e início da produção de espermatozoides. Nas meninas se inicia a partir dos 8 anos de idade com o brotamento das mamas (telarca), crescimento dos pelos pubianos (pubarca), deposição de gordura arredondando o corpo e finalmente a menstruação (menarca).
Principalmente entre os 9 e 12 anos de idade acontece um desenvolvimento emocional intenso, a vida se torna mais colorida, mais complexa nos sentimentos, mais intensa e contraditória. A consciência do mundo aumenta, nos tornamos mais despertos para os encontros. Sim, os encontros. Nessa fase o motor da vida são os encontros, verdadeiros e falsos, interessantes e entediantes, fazendo com que a possibilidade da beleza se estabeleça de forma marcante. A estética da vida é engendrada nesta idade e isso é feito através de duas forças opostas que dançam tensamente em sua interação, a força do pensar e a força do querer. A tensão criada pelo despertar dos polos faz florescer o sistema rítmico, determinando uma experiencia de vida muito rica e intensa.
Nesta fase é importante que o corpo astral consiga fazer sua missão de preparar toda a organização humana para o nascimento da psique propriamente dita, onde pensamento, sentimento e vontade, os atributos da alma, possam se expressar com saúde a partir dos 13 ou 14 anos de idade. Para isso é imprescindível a ausência da atividade erótica sexual de fato, e sim as experiencias do desenvolvimento social familiar, escolar e de amigos e amigas. Do ponto de vista saudável, já pode haver aqui uma vida sensual, os olhares, as impressões, uma atmosfera de paquera, a tensão no ar... mas não mais que isso. A boa condução desta fase se dá na medida em que a alegria das brincadeiras e as grandes imagens da história da humanidade ocupam os corações e as mentes.
Quando conhecemos hoje o contrário disso, vemos sérias consequências no desenvolvimento posterior do sujeito. A erotização e sexualização nessa fase faz a criança se voltar para si mesma e se identificar cedo demais com o próprio corpo e suas sensações, desviando seu desenvolvimento saudável.
Por isso o enorme investimento da pedagogia waldorf em fazer fluir essas grandes e belíssimas imagens do mundo e seus desdobramentos, despertando a imaginação e o entusiasmo!
No terceiro setênio, aí sim vemos o desabrochar da sexualidade uma vez que o corpo astral nasce e agora atua o Eu por dentro cos corpos preparando seu próprio nascimento aos 21 anos de idade. O que marca esse setênio é o despertar da vontade em sua maior potencia e o entusiasmo (ter Deus dentro em tradução livre) deve ser o motor do desenvolvimento.
A sexualidade tem o papel fundamental de ser uma força fecundada pelo pensar que quando acontece faz nascer amor criativo pelo mundo e pelas pessoas. Os ideais nascem também dessa interação. O pensar integrado pelas forças da sexualidade pode se tornar amor intuitivo! Aqui vemos o nascimento maravilhoso do verdadeiro interesse pelo mundo em tudo que ele tem e pela humanidade. A vontade de viver e de mudar o mundo é o sentimento mais saudável dessa fase de vida. Fica claro que o objeto de desejo deve ser o mundo e suas maravilhas. Não de uma forma que exclui a experiencia sensual erótica, obviamente, mas que esta não seja uma grande prioridade.
Se isso de alguma forma não acontece, diz Steiner, duas forças nascem no ser humano: o erotismo egoísta e a sede de poder. Toda possibilidade do egocentrismo, da mentira, do cinismo, da indiferença e do ódio nascem a partir disso. E se isso se intensifica, surge a possibilidade das doenças. Doença é aqui entendida como uma expressão do corpo astral que ainda não foi revelada, iluminada e, portanto, precisa ser transformada e purificada para a cura poder ocorrer.
A conclusão deste maravilhoso processo é a vida social. Sim, a vida social é a consequência desta dança cosmogônica perfazendo através do três primeiros setênios o ser humano! E as forças da sexualidade desempenham um papel absolutamente fundamental nisso. Nunca foi tão importante tornar o assunto sexualidade um domínio da consciência e da autoeducação, fazendo o mesmo ter o “tamanho” que merece, nem tão grande e nem tão pequeno. A medida certa. A cultura humana depende disso!
A antroposofia revela de forma contundente a nossa época. Através de seu estudo podemos entender, aprofundar e transformar os assuntos mais importantes da atualidade.
Pornografia: Um perigo da época
Pactuar a matéria
Significa triturar almas
Encontrar a si no espírito
Significa unir pessoas
Mirar-se no Homem
Significa edificar mundos
Rudolf Steiner
A pornografia é um fenômeno relativamente recente da humanidade. A palavra "pornografia" tem origem no grego antigo "pornographía", que combina "pórnē" (prostituta) e "gráphein" (escrever), inicialmente significando "descrições escritas da prostituição". E pornografia é diferente de erotismo. A pornografia que explicitar, mostrar tudo de forma cada vez mais contundente, excitar de forma contundente ao passo que o erotismo quer sugerir, quer criar a atmosfera da sensualidade, é mais subjetivo, mais intimista.
Com o advento de toda a tecnologia audiovisual a pornografia ganhou destaque e cresceu enormemente. Hoje é uma indústria com seus interesses comerciais e culturais e é um grande negócio. Influencia a sexualidade humana em níveis que os estudiosos do assunto se assustam e impacta profundamente na saúde mental e espiritual de todos.
Segundo a doutora Gail Dines, professora emérita de sociologia e de estudos femininos, e uma das principais autoridades nos estudos sobre pornografia, um terço dos jovens já viram pornografia aos 13 anos, 88% das cenas mais vistas contém violência contra a mulher, 35% dos downloads feitos são de pornografia, 20% de todas as fotos são de crianças de 15 anos ou menos. Sites pornográficos tem mais visitas que Netflix, o antigo Twitter e a Amazon juntos. E mais de 100 milhões de pessoas acessam pornografia todos os dias.
Os sexólogos perceberam que existe uma cultura advinda da pornografia que “instrui” principalmente as meninas a se tornarem “garotas transáveis”, “fuckable girls” em inglês. Ou seja, instrui certos modos de comportamentos, roupas, maquiagens, caras e bocas determinadas que possam sugerir prontidão para o sexo. Isso é ser uma menina interessante! E força os meninos a se tornarem másculos, impenetráveis e ameaçadores. Só assim você é visto, só assim você é aceito. Não há espaço para o subjetivo, para a delicadeza, para a fragilidade e principalmente para a beleza. Uma cultura que força estereótipos eróticos cedo demais expondo as crianças e adolescentes a um escrutínio alheio a elas e eles mesmos, fazendo a educação sexual de crianças e adolescentes serem profundamente pervertidas. A palavra perversão é mais que adequada aqui. Porque se trata de perversão no sentido mais exato.
O foco da indústria, o “commercial target”, são crianças de 9 a 12 anos, os chamados tweens. Parecido como a indústria do tabaco viciou milhões na adolescência como forma de garantir clientes fiéis por décadas, a indústria da pornografia quer viciar o mais cedo possível com o mesmo intuito. Batalhões de neuropsicólogos, especialistas em marketing e neuro marketing trabalham todos os dias com o objetivo de “fisgar” seus “clientes”.
Sexualidade plastificada, generalizada e industrializada. Embalada como produto de consumo descartável e rápido. Não há dúvida que a pornografia dessensibiliza o ser humano, desumaniza o outro, objetifica os corpos, principalmente das mulheres, diminui enormemente a empatia, esvazia a possibilidade dos encontros e quase impossibilita o desenvolvimento da capacidade de fazer vínculos. Faz o ser humano vazio, triste e perigoso.
Conclusão
E assim vemos crianças, adolescentes, adultos e idosos cada vez mais expostos a atrocidades num lugar onde deveria haver tudo que descrevemos acima para o pleno florescer do ser humano. E podemos entender como nossas relações sociais se tornaram secas, ríspidas, indiferentes, egoístas e muitas vezes permeadas de ódio. A manipulação dos afetos nunca foi tão extensamente e tão profundamente usada. Vivemos no neurossensorial uma vida extremamente saturada de estímulos, na vida rítmica uma manipulação dos afetos profunda e no metabólico-motor reina o medo. E a pornografia é um dos principais instrumentos pra isso.
É cristalino que a sexualidade perversa leva a indiferença, incapacidade de fazer vínculos, esvaziamento do ser humano e ao ódio, ao passo que a sexualidade saudável leva a auto revelação, ao aprendizado do Amor em todas as suas vertentes e a religação do ser humano ao mundo espiritual. O caminho saudável dos mistérios maravilhosos da pele, do afeto, da alegria e da ludicidade resultando em intimidade, vinculo e força humana!
A força e a ação de Ahriman e Lúcifer não poderia ser mais exata, mais clara impossível quando se trata de pornografia. Lúcifer encanta, envaidece, joga numa hiper estética colorida e extremamente impactante e Ahriman faz o restante; desvia o eu humano do espírito e o aprisiona na matéria, distancia do afeto e da alegria e o vicia no nada, na alienação total dos afetos e da vida. A morte é o caminho, nada mais. E ainda, é importante ser dito, há uma terceira força adversa que se imiscui na pornografia, mas não vai ser objeto de estudo neste artigo.
Este é um chamado para colocarmos o assunto em cima da mesa, estudarmos mais, aprendermos mais e nunca mais ignorarmos a sexualidade. Ela é força de vida, é dádiva divino espiritual e tem de ser tratada como tal.
Referências bibliográficas
STEINER, Rudolf: “A Crônica do Akasha”, GA 11
STEINER, Rudolf: “A Ciencia Oculta”, GA 13
STEINER, Rudolf: “A Educação da Criança segundo a Ciencia Espiritual”,
STEINER, Rudolf: “O Anjo em nosso corpo Astral”, GA 182
CURY, Ana Paula I. “Sexualidade à luz da Ciencia Espiritual Antroposófica”, apostila
DINES, Gail: “Pornland: como a pornografia sequestrou a nossa sexualidade” Editora Caqui
Sites
Pornografia é a grande psicotecnologia dos nossos dias - 01/06/2025 - Álvaro Machado Dias - Folha
Michael Yaari é médico de família e comunidade, médico antroposófico, tem pós graduação em geriatria e cuidados paliativos. Trabalha e vive atualmente em Campinas e atende em seu consultório particular, em Holambra uma vez por semana e on line para o mundo todo. É palestrante e docente em diversas instituições e formações antroposóficas e não antroposóficas e ama o que faz.