Quando olhamos para o último e maior dos sacrifícios de Steiner – aquele que ele ofereceu na forma do Congresso de Natal – então temos de nos perguntar como podemos compreender este ato central de Rudolf Steiner, e como queremos responder a ele. Não há, naturalmente, qualquer dúvida sobre o quanto ele próprio desejava que este entendimento fosse alcançado, e até o fim de seus dias, esperou por tal compreensão. Os fatos decorridos após o Congresso e mais particularmente após sua morte sugerem que sua esperança não se cumpriu em medida suficiente. Ainda que este impulso não pudesse ser adequadamente realizado pelos membros durante sua existência, não seria justificável imaginar que precisamos hoje tanto mais levar seu legado espiritual à realização, mesmo que isso leve anos, décadas ou séculos? E isso deveria ser feito sobretudo porque o mundo espiritual acolheu seu sacrifício plenamente e respondeu com um afluxo de revelações ainda mais intenso do que antes.
próprio Steiner teria dito ao final do Congresso de Natal “Pode-se dizer hoje que no mundo espiritual foi tomada a decisão de que deste momento em diante as fontes suprassensíveis das quais emanam impulsos e vida estarão mais abertas que antes, e os alicerces estão aí dispostos – se ao menos a Sociedade os puder compreender – para trazer ainda maior profundidade ao movimento antroposófico!” (GA 260a)
Numa conversa com Ita Wegman, em setembro de 1924, quando ela esboçou sua preocupação por sua saúde, ele se expressou ainda mais claramente dizendo: “Estas palestras não são o que me desgasta [ele estava proferindo 4 a 5 palestras por dia]. Elas são o que me tem mantido bem. O que me exaure são os pensamentos mortos que encontro, é a falta de entendimento das pessoas, sua incompreensão é que é paralisante”.
Se pudéssemos estimar a dimensão do sacrifício de Steiner e a dor suscitada nele a partir disso, quem sabe, então, tais experiências despertariam em nós a vontade de tomar isto como um ponto de partida para levar a efeito as tarefas que precisamos enfrentar desde o Congresso de Natal. Podemos assumir que Marie Steiner tinha isto em mente quando escreveu em suas memórias sobre o CN: “Para aqueles que têm a possibilidade de recordar o que ali sucedeu, o Congresso de Natal aparece sob uma luz trágica. Não temos o direito de desviar nossos pensamentos das dificuldades e sofrimentos que emergem disso [significando a doença e a mort de Steiner], pois sofrimento traz conhecimento – conhecimento nasce da dor. E esta dor deve guiar-nos para que assumamos nossas tarefas com uma renovada disposição e vontade ainda mais forte”. (GA 260a) Estas tarefas eram aquelas que Steiner deu aos membros da Sociedade durante o CN.
Olhando retrospectivamente, temos de admitir, entretanto, que na maioria dos casos estamos ainda distantes do cumprimento das tarefas dadas. Contudo, se o esforço for empreendido a partir de uma lealdade por Rudolf Steiner e pela Antroposofia, acredito que teremos melhores chances de nos aproximarmos destas metas.
Sabemos que muitas cisões e conflitos eclodiram entre membros da Sociedade nos anos 1930-40, e até mesmo mais tarde. E muitos dentre os envolvidos frequentemente se referiam ao Congresso de Natal de uma forma que em realidade nada tinha a ver com ele. Como se um profundo ato de mistérios fosse obscurecido por uma luta de poder no contexto dos argumentos entre representantes de diversas correntes na Sociedade. Entretanto, o que se pretendia com o Congresso de Natal? Justo o oposto: que todas as correntes cármicas na Sociedade pudessem confluir e conectar-se umas com as outras sobre a base espiritual unificada da Antroposofia como a moderna forma Micaélica do Cristianismo Esotérico.
Ao lado dos obstáculos surgidos na história da Sociedade Antroposófica no século XX há razões ainda mais profundas e inteiramente objetivas para a dificuldade de se chegar a um entendimento da natureza espiritual do Congresso de Natal.
O principal problema talvez seja que com ele, algo inteiramente novo entrou na história humana dos Mistérios; algo sem precedentes nas tradições ocultas. Obviamente a própria Antroposofia no que concerne a seu conteúdo era algo bem novo e independente. Steiner, entretanto, sempre que possível, procurara vincular-se a algo já existente. Por exemplo, no início da atividade antroposófica ele utilizou expressões teosóficas para vários fatos espirituais, ou em seu próprio trabalho esotérico, vinculou-se a formas da Escola Teosófica. Também em resposta ao pedido dos sacerdotes para a fundação de um movimento de renovação religiosa, ele moldou suas formas cúlticas em relação com a tradição já existente em tempos cristãos.
Mas o Congresso de Natal - tanto do ponto de vista do conteúdo, quanto de sua forma - não nasce de nenhuma corrente espiritual previamente existente, senão que aparece como algo totalmente novo na evolução da humanidade. Como um ato humano concreto ele foi tão inovador quanto a Filosofia da Liberdade no caminho do conhecimento.
E ao assumir a presidência da Sociedade Antroposófica Geral no Congresso de Natal em 1923/24, Steiner ao mesmo tempo tomou para si toda a responsabilidade pessoal pela organização e os assuntos administrativos. Não apenas não se ligou a qualquer tradição oculta em existência, como quebrou paradigmas que constavam nelas, emancipando-se inteiramente.
Isto resultou em uma razão ulterior para diversas dificuldades, pois o Congresso de Natal no sentido espiritual não se vincula a nenhum dos mistérios pré-cristãos que desempenharam um importante papel nos círculos antroposóficos. Considerem que a maioria dos antropósofos em suas encarnações pregressas passou por diferentes treinamentos em Antigos Mistérios. Justamente esta conexão os levara a buscar a Antroposofia na Terra – e tão logo a encontraram, com sua ajuda, ingressaram na corrente dos Novos Mistérios que se ligam diretamente ao Mistério do Golgotha. “Para compreender o Mistério do Golgotha não é suficiente renovar os antigos mistérios, mas é preciso penetrar em uma cultura de mistérios inteiramente nova”. (GA 258, 14/06/1923)
A dificuldade resultante jaz no fato de que o conhecimento espiritual que a maioria dos antropósofos possuía, trazia inconscientemente uma conexão com os antigos mistérios vivenciados em existências anteriores, e isso não os ajudava a captar o que acontecera no Congresso de Natal como fato místico, como evento espiritual único da história universal.
Só os poderia ajudar a compreender o significado deste turning-point – como o próprio Steiner o caracterizou, o entendimento da natureza esotérica do CN - ´o reconhecimento de que os Novos Mistérios já não são Mistérios da Sabedoria, mas da Vontade. Como um moderno caminho de iniciação Cristão-Rosacruz trata-se do desenvolvimento da vontade. “Esta é a direção na qual nos guia Micael hoje dentro dos novos mistérios. De agora em diante ele nos conduzirá ascendentemente nas mesmas sendas pelas quais a Sabedoria desceu até seu estágio final: a inteligência”. (GA 26)
Aqui também, podemos ver uma das tarefas centrais de Steiner, a reunião das correntes do Cristianismo Cósmico Michaelico com a do Cristianismo Esotérico Rosacruciano. Estas duas correntes – que abarcam os segredos da Vinda do Cristo à Terra e Sua partida do Sol – são integradas em uma unidade nos Novos Mistérios da Vontade.
Ocorre que os Mistérios da Vontade só se tornam reais quando os seres humanos verdadeiramente os realizam. Se isto não acontece e eles são meramente discutidos, então eles não chegam a existir e é absolutamente impossível encontrar qualquer traço deles. Portanto, nosso relacionamento com os Novos Mistérios depende inteiramente de que, com a força do conhecimento individual que tenhamos conquistado, nós realmente avancemos ao longo do caminho de desenvolvimento a ponto de ele se abrir para nós. Em outras palavras, trata-se sobretudo de uma Vontade forte conduzida ou orientada pelo conhecimento. Em relação aos estatutos, Steiner chega a dizer que nenhum deles existe na forma dada, mas é realmente uma descrição do que se intenciona fazer! Também a meditação da Pedra Fundamental termina com a expressão do querer: “que se torne bom o que nós com o coração QUEREMOS fundar!”
Este caráter volitivo dos Novos Mistérios torna necessário que as questões com que nos defrontamos no âmbito do conhecimento sejam reformuladas. Por exemplo, em relação à liberdade, Steiner abriu-nos uma perspectiva inteiramente nova abordando a questão a partir do espírito dos novos mistérios: “Para o monismo, dado que não considera o ser humano como produto acabado que expressa sua essência completa em cada momento de sua vida, a disputa sobre se o homem é livre ou não lhe parece vã. Considera o ser humano como um ser em evolução e pergunta se nesse processo evolutivo pode ser alcançado também o grau de espírito livre.” (GA 4 cp10). “A natureza faz do homem um mero ser natural; a sociedade, um ser que age conforme leis; um ser livre somente ele pode fazer de si mesmo. A natureza abandona o homem em determinado estado de sua evolução; a sociedade o conduz alguns passos adiante; o último aperfeiçoamento somente ele pode dar a si próprio”. (GA 10 – cap 9)
A chave para as citações acima é dada no processo de desenvolvimento. Somente quando a solução deste problema é buscada não em discussões e querelas, mas no caminho de um real esforço espiritual para alcançar progresso interior, podem os seres humanos esperar encontrar uma resposta através dos Novos Mistérios.
Isto nos leva a outra questão central: “Será que a Escola Superior Livre de Ciência do Espírito ainda existe como instituição esotérica com seu conteúdo centrado no curso das aulas da Primeira Classe ou não?” Só o saberemos por meio de um trabalho interior e genuíno exercício meditativo, coisa que só pode ser alcançada através da experiência pessoal e não das opiniões de outros...
Similarmente, outra questão que se apresenta é: “Qual é hoje o relacionamento entre o Movimento Antroposófico e a Sociedade Antroposófica?” Há quem diga que a união dos dois alcançada por Steiner jamais pode ser dissolvida e outros creem que com a morte dele ela foi interrompida.
Talvez a resposta seja que a união do Movimento Antroposófico e da Sociedade Antroposófica se torne uma realidade quando meditando profundamente a Pedra Fundamental que Steiner deu aos membros no CN, nós possamos senti-la como o alicerce de uma nova comunidade de seres humanos. Então sobre esta Pedra Fundamental imersa em nossos corações, esta integração terá lugar. Quando isto acontecer, o Movimento Antroposófico descerá como corrente puramente suprassensível dos mundos espirituais até a Pedra Fundamental posicionada como altar no limiar entre os mundos etérico e físico, alcançando o coração humano; enquanto a Sociedade Antroposófica no caminho do Culto Reverso, se eleva aos “espíritos alma” alcançando o mundo espiritual e se tornando esotérica.
De modo que se implantarmos a Pedra Fundamental em nossos corações podemos a qualquer momento de nossas vidas converter a Sociedade Antroposófica em uma Comunidade Esotérica e ao fazê-lo damos ao Movimento Antroposófico a oportunidade de se tornar efetivo na Terra na medida em que nos tornamos instrumentos dos poderes espirituais. Portanto, a integração entre Sociedade e Movimento, entre o mais exotérico e o mais esotérico, pode ser levada a efeito pelos membros através de sua conexão uns com os outros, por um lado, e através de seu trabalho meditativo sobre a Pedra Fundamental, por outro.
Se quisermos ser verdadeiros discípulos esotéricos de Steiner e colaboradores de Michael, temos de distinguir claramente entre o que parece importante do ponto de vista de nossa inclinação pessoal ou disposição cármica, e o que Steiner demonstrou ser importante. Pois o que seria da maior importância para ele, senão aquilo pelo que ele ofereceu o maior sacrifício?
De um ponto de vista esotérico, a refundação da Sociedade e o assumir pessoalmente sua direção significou tomar para si o carma dos antropósofos, unindo seu destino ao da própria Sociedade. Este ato sacrificial verdadeiramente forma o centro do Congresso de Natal. E se o compreendemos deveríamos nos indagar: como podemos responder a isso para que seu sacrifício não seja em vão?
INDICAÇÕES DE LEITURA SOBRE O TEMA:
1. A Assembleia de Natal 1923/24 para a Fundação da Sociedade Antroposófica– GA 260 – edição brasileira em forma de apostila da SAB
2. Karmic Relationships. Rudolf Steiner. Volumes III, VI, VIII – Rudolf Steiner Press, London 1975
3. The Anthroposophic Movement – GA 258 – ultima palestra – Rudolf Steiner – Rudolf Steiner Press, 1993
4. The Esoteric Nature of the Anthroposophic Society – Sergei Prokofieff –Wynstones Press - 2014