A QUESTÃO DA REENCARNAÇÃO E DO CARMA NA VIDA DE RUDOLF STEINER
por Sonia Setzer
por Sonia Setzer
Já por ocasião da fundação da Seção Alemã da Sociedade Teosófica, assim que iniciou suas atividades como secretário-geral dessa Seção em outubro de 1902, Rudolf Steiner queria dedicar-se à questão da reencarnação e do carma. Ministrou um ciclo de palestras cujo título era “Antroposofia”, ou seja, logo de início já pretendia que o movimento antroposófico [1] participasse da fundação dessa Seção. Propôs iniciar com uma palestra à qual deu o título “Praktische Karma-Übungen” [Exercícios práticos de carma]. Rudolf Steiner descreveu o motivo:
“Na época, a intenção era introduzir imediatamente no movimento antroposófico a ideia do carma com tal impulsividade interior, que essa ideia pudesse tornar-se um dos grandes fios condutores do qual se desenvolveria o movimento antroposófico. Todavia, quando expus a algumas pessoas o que eu queria dizer com esse título, as celebridades de então, que ainda tinham vindo da antiga Sociedade Teosófica, caíram em cima de mim.” (GA 240, palestra de 09.04.1924)
Na palestra de 24.8.1924, em Londres, (GA 240), Rudolf Steiner disse:
No entanto, as pessoas [que estariam] presentes na fundação assustaram-se terrivelmente quando souberam [...] que eu queria falar sobre o carma de forma prática. A toda hora apresentavam argumentos como: ‘O senhor quer enterrar em um dia todo o nosso trabalho de décadas?’. [...] Continuamente marcavam reuniões particulares, por assim dizer, para me fazer entender que isso não poderia acontecer. [...]
Ficou totalmente impossível manter o programa planejado, pois seria em vão. [...]
Talvez tenha sido bom assim. Pois entrementes passaram-se três vezes sete anos, nos quais vários elementos que não queriam penetrar na consciência puderam adaptar-se no âmbito inconsciente e subconsciente. Isso realmente aconteceu. Portanto, é possível que agora possa começar, de modo esotérico, a familiarização com o impulso do Congresso de Natal no Goetheanum, o que não pôde ocorrer naquele tempo; que se possa procurar na esfera do carma os impulsos evolutivos ocultos do universo, do cosmo e da humanidade. Surgem perguntas e, desde que já possam ser respondidas pelo mundo espiritual, serão dadas as respostas referentes ao carma da humanidade, ao carma isolado, individual etc. Assim, poderão ficar evidentes os impulsos do mundo espiritual que atualmente querem penetrar com toda força no mundo da humanidade.
Mesmo assim, durante esses “três vezes sete anos” Rudolf Steiner tratou do tema reencarnação e carma em diversas ocasiões. Já em 1903 publicou um artigo na revista Lucifer-Gnosis: “Como atua o carma” [2] ; em 1910 ministrou um ciclo de palestras, As manifestações do carma [3], no qual abordou as leis do carma em indivíduos, na humanidade, na Terra e até no universo, bem como em questões de saúde e doença etc. Trazia aspectos que não entrariam em conflito com a Sociedade Teosófica.
Em 1912, Rudolf Steiner proferiu três palestras em Berlim e duas em Stuttgart, que compõem o livro Reencarnação e carma [4]. Nestas conferências ele trata das transformações que ocorrem na transição de uma vida para a seguinte, oferece exercícios que permitem um aprofundamento na questão das vidas sucessivas, debate a questão dos “acasos”, entre outros temas. Um dos aspectos que considero mais importantes nestas palestras é a seguinte afirmação, em resposta à pergunta que ele mesmo formulou na palestra de 05.03.1912: “O que a antroposofia em si traz para a humanidade?”.
A antroposofia em si traz para a humanidade algo semelhante ao que foram todas as grandes verdades espirituais que desde sempre foram trazidas para a humanidade, apenas de modo mais espiritual e, em relação ao estado de alma humano, mais profundo e mais significativo.
Ou seja, aparentemente nada de novo, apenas de forma adequada à nossa época. Será mesmo?
Não temos de ir muito longe para caracterizar onde se encontra o aspecto verdadeiramente novo do movimento antroposófico. Ele se encontra no fato de as duas verdades que constituem, por assim dizer, nossos aspectos mais fundamentais, se aproximam das almas humanas de maneira cada vez mais convincente: as duas verdades da reencarnação e do carma.
A questão de como o ser humano pode elevar-se do mundo sensório comum para mundos superiores não é algo fundamentalmente novo. Mesmo a questão do Cristo não é o mais essencial no movimento antroposófico, pois em diversos períodos o Ocidente ocupou-se dela de maneira realmente profunda: já na gnose e depois nas comunidades do Graal ou da Rosacruz, professava-se um profundo cristianismo esotérico.
O fato de reencarnação e carma se fazerem valer como uma parte da consciência humana, que sejam acolhidos no coração e no estado de alma do ser humano como ocorre por meio da antroposofia, é algo que realmente só pode acontecer em nossa época presente. Por isso seria possível afirmar que a relação de um ser humano com a antroposofia caracteriza-se pelo fato de ele poder chegar à condição de acolher a reencarnação e o carma como conhecimentos, em virtude de um pressuposto qualquer. Esse é o aspecto essencial de que se trata.
Nesse período Rudolf Steiner introduziu um novo conceito: o do “carma solar”. Pela antiga tradição oriental, o carma está vinculado a atitudes do passado: o “carma lunar”. O que nos sucede é para compensar falhas cometidas em encarnações passadas. Mas também podemos passar por situações difíceis que nos preparam para uma missão em uma encarnação futura: é o “carma solar”.
Depois do Congresso de Natal em 1923/24, Rudolf Steiner realmente pôde trazer ao mundo o que tanto desejava. Entre 25 de janeiro e 23 de setembro de 1924 proferiu 82 palestras sobre o tema, reunidas em seis volumes [5]. A primeira dessa palestras ocorreu em Berna, Suíça, a segunda, em 6 de fevereiro, em Stuttgart, Alemanha, a maior parte em Dornach. Porém, durante suas muitas viagens Rudolf Steiner também tratava deste tema que lhe era tão caro, como em Praga, Paris, Breslau (Alemanha), Arnheim (Holanda), Torquay e Londres (Inglaterra). A “última alocução”, proferida em 28 de setembro de 1924, na véspera do dia dedicado a Micael, consta do volume 4 desta série.
Nessas conferências Rudolf Steiner trata do tema reencarnação das mais variadas maneiras, mas é possível notar a nítida diferença que há em relação às palestras de ciclos anteriores. Há considerações sobre carmas individuais, sequências cármicas de grupos de pessoas, sequências cármicas que atuaram profundamente na evolução da humanidade, entre outros. Tudo, porém, parece provir da condução por uma sabedoria cósmica, para trazer o que a humanidade necessitava naquele período. Surgem perguntas como: “Devido aos atos maus praticados na encarnação anterior, uma personalidade deveria sofrer horrores na encarnação seguinte, mas não é bem assim que acontece.”, ou “Como explicar que um revolucionário republicano apoie a instauração de uma monarquia?”. Nossa consciência comum não atinge a grandiosidade revelada pela pesquisa do carma, como feita por Rudolf Steiner.
No entanto, há um assunto relevante que consta do vol. 3 e das palestras de Arnheim (vol. 6): o carma da Sociedade Antroposófica. Com esse conhecimento pode-se não apenas entender a diversidade que se encontra entre os membros, mas permite que se desenvolva maior interesse pelo outro, maior compreensão, maior tolerância e aceitação do diverso.
Algo que pode parecer estranho à primeira vista, é o quanto Rudolf Steiner fala sobre o Congresso de Natal, da Sociedade Antroposófica Geral recém fundada. Aqui, entendo, ele está abordando o carma da nossa época, a missão da Sociedade Antroposófica e de cada um de seus membros para cumprir o que desde 1879 Micael, como regente desta época, veio propor, e o que desde o fim do Kali Yuga, em 1899, é nossa tarefa: voltar outra vez não apenas à contemplação do mundo espiritual, mas sobretudo ao encontro do Cristo no mundo etérico.
Afinal, tudo o que Rudolf Steiner pôde revelar, não apenas nesse contexto, é resultado de sua pesquisa espiritual. Nessas obras, todavia, ele não dá muitos exercícios práticos para esse fim. Entretanto, chegam a ser quase comoventes os relatos de como ele mesmo se deparou com imensas dificuldades em algumas de suas pesquisas cármicas, como teve de buscar durante muito tempo, por diversos caminhos, até encontrar uma via de acesso ao que buscava.
Ora, quando se quer pesquisar o carma, de fato, não se consegue investigá-lo observando, de início, as condições de vida mais evidentes. Se eu olhasse apenas para o fato de ele [meu professor de geometria] ser um excelente professor [...], certamente nunca teria atingido as relações do seu carma. O que me causou uma profunda impressão em relação a toda sua vida, foi a condição de esse professor ter um pé torto congênito. Uma perna era mais curta do que a outra.
[...] Um pequeno hábito pode transformar-se em imagem e introduzir carmicamente a vidas pregressas da pessoa em questão. (GA 239, palestra de 11.06.1924)
Outro exemplo: havia ocorrido um acontecimento que abalou terrivelmente a sociedade europeia. Nessa ocasião Rudolf Steiner visitou Karl Julius Schröer, o qual, durante a conversa, sem motivo aparente
pronunciou, como que das profundezas espirituais tenebrosas, a palavra ‘Nero’. Poder-se-ia supor que isso não tinha explicação. [...] de modo que me questionei, por que justamente agora ele está pensando em Nero? [...] Na época, a palavra ‘Nero’ abalou-me [...] e fez com que surgisse um motivo para pesquisar o assunto.
Tive muitíssimas dificuldades em efetuar essa investigação, que foi assaz demorada, pois esses assuntos requerem muita cautela, e porque eu naturalmente sempre era confundido – quer os senhores acreditem ou não, é assim –, por todas as pessoas possíveis que queriam assumir o Nero para si mesmas, defendendo isso com muito fanatismo. (GA 236, palestra de 27.04.1924)
Não é possível alongar-me neste espaço; haveria muitas outras considerações a serem feitas. Assim, convido o leitor a estudar com veneração e gratidão estas palestras e imaginar, como eu, o quanto mais Rudolf Steiner ainda teria podido contribuir nesse contexto, se não tivesse de deixar tão precocemente o plano físico!
Notas e referências bibliográficas
[1] É importante ressaltar que naquela época Rudolf Steiner se referia a “movimento antroposófico” como algo que “não nasceu de arbítrio terrestre”, que se trata da “revelação de algo espiritual que se abriu para a humanidade”. Steiner, R. Die Weihnachtstagung zur Begründung der Allgemeinen Anthroposophischen Gesellschaft 1923/24 [O Congresso de Natal para a fundação da Sociedade Antroposófica Geral 1923/24]. GA 260. 5 ed. ampliada. Dornach: Rudolf Steiner Verlag, 1994; Conferência de 24.12.1923.
[2] STEINER, Rudolf. Como atua o carma. GA 34. 7. ed. São Paulo: Antroposófica, 2022.
[3] STEINER, Rudolf. As manifestações do carma. GA 120. 3. ed. São Paulo: Antroposófica, 2017.
[4] STEINER, Rudolf. Reencarnação e carma. GA 135. São Paulo: Antroposófica, 2022.
[5] STEINER, Rudolf. Observações esotéricas de relações cármicas, vol. 1-6. GA 235 a 240. São Paulo: Antroposófica, 2023 e 2024.
Sonia Setzer é médica antroposófica, tradutora, palestrante e autora. Foi presidente da Associação Brasileira de Medicina Antroposófica de 1991 a 1999, e desde 1998 é coordenadora do Ramo Rudolf Steiner de São Paulo. Foi secretária-geral da Sociedade Antroposófica no Brasil de 2016 a 2023.