O PENSAR É UM CAMINHO PARA CONHECER O MISTÉRIO HUMANO
por Jonas Bach
por Jonas Bach
“Existirmos, a que será que se destina?” foi um modo poético no qual Caetano Veloso conseguiu expressar a essência da senda humana. As religiões, as culturas de todos os povos, as filosofias são tentativas de responder a essa indagação existencial. Nós somos um mistério para nós mesmos. Então, qual caminho devemos trilhar para encontrar uma resposta? Se a opção é um encontro consciente com esse mistério, o pensar obtém o papel principal.
Essa é a mensagem de Rudolf Steiner logo no início quando ele trata sobre corpo, alma e espírito no livro Teosofia. O ser humano só consegue elucidar a si mesmo quando compreende a importância do pensar dentro de sua própria essência. Steiner enfatiza ainda que esse pensar precisa encontrar um lastro corporal, o cérebro. Os olhos precisam de um desenvolvimento saudável para serem órgãos das percepções cromáticas. O cérebro, órgão do espírito, necessita ser adequadamente formado para servir à atividade pensante. Essa formação cerebral é incumbência da educação e da cultura.
No entanto, vivemos na atualidade sob a ameaça do falatório que é o uso de palavras vazias e sob a ameaça do rotten brain, do cérebro podre que é um mal do século XXI. A expressão traduz a deterioração mental pela qual muitas pessoas estão passando devido ao excesso de contato com trivialidades no mundo digital. O cérebro podre é a desistência de participar em uma atividade que nos constitui como humanos.
Se a solução do mistério humano passa pelo pensar, este também deve ser desvendado. A contribuição filosófica de Rudolf Steiner reside justamente em sua dedicação ao pensar sobre o pensar. Não é uma tarefa fácil, se fosse, filósofos seriam pessoas felizes. Pois quando alguém observa o seu próprio mundo mental, essa pessoa se encontra dentro de seu labirinto. Nem todo mundo encontra a saída do labirinto, a solução do seu enigma. Cada labirinto é completamente diferente do outro. Cada pessoa vive em um labirinto singular e único. Se alguém não conseguiu sair do seu, não significa que não sairei do meu. O inverso também é verdadeiro, o sucesso alheio não é garantia do meu sucesso.
O que precisa ser dito sobre esse primeiro gesto de observar seu próprio mundo mental? No capítulo 3 da Filosofia da Liberdade, Rudolf Steiner destaca a primeira observação que deve ser feita sobre o pensar: ele é a atividade normalmente inobservada. Isso pode soar estranho para quem não mergulhou em sua obra. Seu intuito é demonstrar o seguinte: no estado mental comum podemos nos tornar conscientes dos pensamentos que temos na mente.
Os pensamentos são o resultado de uma atividade, o pensar. O que observamos já é algo pronto, o que permanece normalmente inobservado é a atividade que gerou os resultados. Se alguém quer se autoconhecer não meramente por intermédio do que se manifesta pronto em seu mundo mental, mas incluindo a atividade criadora do seu mundo consciente, acontece uma outra qualidade de autoconhecimento.
Ciente das questões epistemológicas de seu tempo entre o final do século XIX e início do XX, Rudolf Steiner alerta para os desafios inerentes a quem desbrava o labirinto do pensar com suas possibilidades de erros e ilusões. A uniformidade e a unilateralidade do pensar representam um perigo, uma limitação ao infinito potencial da capacidade pensante. Em seu livro O método cognitivo de Goethe, ele adverte sobre o erro de se considerar universal um modo de pensar que é válido apenas para um tipo de objeto. Se isso fosse óbvio, a modernidade não teria tomado o rumo que tomou epistemologicamente. Então, não basta abordar o que, ou seja a atividade, o pensar, é igualmente necessário conhecer o como, o modo de pensar. E existe uma diversidade de modos de pensar. Cada tipo de objeto do conhecimento, por exemplo, requer um modo de pensar distinto.
Além disso, se eu digo que minha profissão é ser professor, mas alguém nunca assistiu uma aula minha, a pessoa sabe o que sou, mas não como sou. Nesse sentido, eu só conheço um modo de pensar se eu participo dele. Se devo conhecer objetos que são unicamente físicos, há um modo de pensar específico para esses objetos. Se quero conhecer um objeto orgânico, um objeto vivente, preciso participar do modo de pensar inerente à qualidade fenomênica em questão. Uma mulher se apresenta publicamente como escritora, então sei o que ela é. Se quero saber como ela é, preciso ler seus livros. Brevemente sei o que ela é, ou seja, escritora, para saber como ela é escritora, somente o tempo dedicado à leitura de suas obras me permite conhecer como. Da mesma maneira, conhecer um modo de pensar exige tempo de dedicação.
Os diferentes modos de pensar também dão origem às cosmovisões distintas. Essa é a contribuição de Rudolf Steiner em seu ciclo de palestras publicado como Astrologia Espiritual. O pensar em essência é o centro comum a todos nós, mas nossa participação individual ocorre na periferia, em uma cosmovisão específica. O perigo é acreditar que a cosmovisão na qual participo seja a única correta e, assim, passo a acreditar que todas as outras são erradas. A unilateralidade do pensar ou de uma única cosmovisão é a origem dos conflitos humanos. Se eu permaneço somente em uma cosmovisão, perco a chance de compreender as outras. A diversidade humana não é somente manifestação de diferenças relacionas ao corpo, há a diversidade espiritual, a diversidade epistemológica. Cada cosmovisão me oferece uma perspectiva diferente do mundo.
Existem doze cosmovisões [1], todas igualmente válidas de acordo com o que cada uma aborda. A mensagem de Rudolf Steiner é um convite à dinâmica cosmovisionária, à capacidade de transitarmos em diferentes cosmovisões para enriquecer nossa experiência do mundo e da vida. Quem participa de várias cosmovisões compreende melhor o outro. O realismo e o idealismo são duas cosmovisões diametralmente opostas uma à outra. O que uma cosmovisão me ensina, não aprendo com a outra, e vice-versa.
Ler e compreender outras filósofas ou outros filósofos implica, de certa maneira, em absorver seu modo de pensar como pré-requisito. Meu pensar precisa adquirir traços nietzschianos se quero entender a filosofia de Friedrich Nietzsche. O mesmo poderia ser dito em relação a outras pensadoras e outros pensadores. Meu pensar pode receber influências de Hannah Arendt e ter características arendtianas ao compreender o ser humano como ser político, por exemplo.
Em um momento durante sua vida, Rudolf Steiner reconheceu A Filosofia da Liberdade como sua obra mais importante, aquela que sobreviveria os séculos. Nela, a questão chave é a compreensão do pensar, de um pensar que compreende a si mesmo (epistemologia) para depois se transformar em querer e ação no mundo (ética). O desafio para efetivamente compreender esta obra não é tornar o meu pensar um pensar steineriano. O intuito de Rudolf Steiner não foi criar réplicas do seu modo de pensar, pelo contrário, o convite é para que cada leitora e cada leitor aprenda a formar o seu próprio pensar a partir de suas próprias forças espirituais.
Cada ser humano é um mistério único e irrepetível. Existirmos, a que será que se destina? O mistério único que cada pessoa é, requer uma longa jornada de desvendamento. O pensar próprio é um caminho para conhecê-lo.
Se alguém é arrastado na corrente atual do cérebro podre, o caminho que leva ao mistério já foi há muito tempo abandonado. Se alguém se perde na corrente do falatório - o uso inadvertido, supérfluo e tagarela das palavras -, não terá subsídios mentais para trilhar o caminho. Em relação ao desenvolvimento do pensar próprio, todos somos chamados, mas poucos se escolhem.
Notas e referências bibliográficas
[1] STEINER, Rudolf. Astrologia Espiritual: pensamento humano e cósmico. Curitiba: Lohengrin, 2021. Nesse livro Rudolf Steiner classifica as 12 cosmovisões segundo o modo de pensar de alguns filósofos e as correlaciona com os signos do zodíaco: materialismo (Câncer), matematismo (Gêmeos), racionalismo (Touro), idealismo (Áries), psiquismo (Peixes), pneumatismo (Aquário), espiritualismo (Capricórnio), monadismo (Sagitário), dinamismo (Escorpião), realismo (Libra), fenomenalismo (Virgem) e sensualismo (Leão).
Jonas Bach é pós-doutorando em música e fenomenologia na USP de Ribeirão Preto. É pós-doutor em fenomenologia de Goethe pela Unicamp. É professor de filosofia na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e doutor em educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).