SOBRE OS "PENSAMENTOS GUIA" DE RUDOLF STEINER
por Constanza Kaliks
por Constanza Kaliks
Rudolf Steiner começa a publicar sua última obra escrita em forma de artigos semanais em fevereiro de 1924, imediatamente após a Conferência de Natal, realizada de 24 de dezembro de 1923 a 1º de janeiro de 1924. Na Conferência, refunda a Sociedade Antroposófica e a Escola Superior para Ciência Espiritual. Cria a revista na qual semanalmente publicará artigos voltados aos membros da Sociedade, em forma de cartas e textos curtos. Os dois últimos aparecerão nas duas primeiras semanas de abril, após a sua morte em 30 de março de 1925. A partir de setembro de 1924 redige os textos no seu ateliê, no qual viverá, já muito doente, sob os cuidados de Ita Wegman, os meses finais de sua vida, ao lado das ruinas do primeiro Goetheanum. Junto a inúmeras atividades que continua desenvolvendo no ateliê está o acompanhamento ativo do processo de autorização da construção do segundo edifício, cujas formas esboça, mas que não chega a ver construído.
Em meados de janeiro de 1924 aparece o primeiro número do semanário “O que se passa na Sociedade Antroposófica” (“Was in der Anthroposophischen Gesellschaft vorgeht”), e Rudolf Steiner se dirige aos membros da Sociedade com um texto sobre a formação da Sociedade no Congresso de Natal. A partir daí, escreve semanalmente artigos que dirige “Aos membros!”.
Na primeira carta, Rudolf Steiner expõe a intenção, escrevendo que os textos “[...] contêm sugestões para a direção de palestras e conversas nos diversos grupos da Sociedade [...]. Entendem-se apenas como um incentivo, desde o Goetheanum, para a Sociedade como um todo.” [1] Enfatiza que é fundamental que haja absoluta autonomia nos diversos grupos para que a Sociedade possa se desenvolver numa vida enriquecida pela diversidade. E que igualmente importante é desenvolver uma consciência da Sociedade como um todo, o que pode ser impulsionado através do estudo de temas comuns. [2]
Os textos contêm de forma sucinta conteúdos que Rudolf Steiner desenvolvera de forma escrita e em inúmeras conferências durante mais de três décadas. Em uma linguagem nova o próprio autor reformula sua obra com grande intensidade e abrangência. Os temas centrais de sua Ciência Espiritual estão presentes, e a partir de agosto de 1924, serão desenvolvidos a partir da perspectiva e diretamente relacionados à figura de Micael. De forma sem precedentes na obra de Steiner a atuação de Micael e sua relação com a evolução humana e cósmica são colocadas como experiência central no devir da inteligência e da liberdade humanas.
As assim chamadas “Cartas Micaélicas” começam a ser publicadas em meados de agosto, durante a última viagem, à Inglaterra. É nova e surpreendente a intensidade da presença de Micael como tema. E esse será também o tema da última alocução dada por Steiner, em 28 de setembro, quando seu estado de saúde o obriga a interromper as atividades públicas. As aulas da Primeira Classe da Escola Superior para Ciência Espiritual, que dera aos membros da Escola de fevereiro a julho – o ciclo de dezenove aulas como fundamento espiritual para o trabalho dos departamentos, das seções da Escola – são retomadas em Dornach durante o mês de setembro e, a partir da volta de Londres, numa nova intensificação em sua relação com Micael como ser cósmico.
As cartas e os “pensamentos-guia” apresentam um conteúdo singular para o estudo da Antroposofia: único em sua densidade e sua linguagem, dirige-se à leitura e ao estudo hoje – tempo de tempos intensos, na implicação imediata de quem lê, na possibilidade de múltiplas leituras e aprofundamentos, dada a expressão densa, que de certa forma recusa reduções simplificadoras. Ao mesmo tempo são textos curtos e simples em sua estrutura. Podem ser lidos com os mais diversos horizontes de referências anteriores. Podem ser – e essa é a perspectiva que este breve artigo quer sublinhar – abordados em sua força seminal, como pontos de partida a serem desdobrados, desenvolvidos, expandidos no decurso do estudo e de possivelmente múltiplas leituras, individuais e também – e sobretudo – em diálogo, na troca que permite expandir o que, em potência, está dito como impulso.
O caráter germinal destes escritos aponta para um potencial a ser aprofundado, exercitado e desenvolvido. [3] Tem-se mostrado um fundamento inspirador para estudos e tem sido uma sugestão para leituras em grupos, em formações e em colegiados. Para a ocasião dos 100 anos da morte de Rudolf Steiner foi publicada uma primeira edição bilingue, alemão e inglês [4], e a Seção Geral de Antroposofia, no Goetheanum tem trabalhado em encontros em que se lê um texto que logo é comentado, seguindo-se conversas e trocas.
Como exemplo de um âmbito para o estudo pode-.se tomar a perspectiva antropológica, o conhecimento do ser humano como base para práticas transformativas nas diversas áreas de atuação profissional, como Rudolf Steiner propõe entre outros para a pedagogia, a medicina, a agricultura. Temas antropológicos centrais como a vivência de destino enquanto relação entre eu e mundo podem ser estudados em poucos parágrafos que permitem um acesso imediato ao cerne do pensamento exposto, que pode ser trabalhado a partir de vivências, e pode também ser tomado como conteúdo para uma prática contemplativa e meditativa – os textos propiciam muitas formas de trabalho.
Como exemplo, a publicação de 13 de julho de 1924, intitulada “Algo sobre o entendimento do espirito e da vivência de destino” fala da relação intrínseca entre eu e mundo, que pode ser experimentada sempre de novo – o texto aponta para o exercício dessa vivência como chave para o entendimento do conhecimento antroposófico. [5] Descreve a vivência que o ser humano pode ter: quando penso o mundo, estou em mim, quando me aprofundo em minhas reflexões, encontro experiências de mundo - o mundo intervém em minha experiência. [6] Ao sentir intensamente esse duplo pertencimento o ser humano se encontra no cerne dos enigmas humanos e do mundo.
O destino do ser humano é elaborado para ele pelo mundo que seus sentidos lhe revelam. Quando ele encontra sua própria força de atuação no atuar do destino, seu eu emerge não apenas de seu próprio interior, mas também do mundo dos sentidos. Podendo sentir, mesmo que levemente, como no eu o mundo aparece como realidade espiritual e como no mundo dos sentidos o eu se mostra atuante, já se está em uma compreensão segura da Antroposofia. [7]
Os temas das cartas são diversos, alguns tem continuidade direta na semana seguinte, outros são retomados em momentos distintos. É interessante, também, observar os temas no contexto das outras atividades concomitantes de Rudolf Steiner. Em particular, e como exemplo, vale aqui notar que na mesma edição do semanário em que é publicado o texto acima referido sobre a vivência de destino, a dirigente do departamento para os jovens, Maria Röschl, coloca duas perguntas, que Rudolf Steiner dirige aos membros mais jovens, pedindo respostas por escrito em até duas semanas. As perguntas são: “O que eu quero como pessoa jovem?” e a segunda se refere a como o jovem imagina que o mundo vai estar constituído no âmbito que internamente vive como possibilidade profissional no ano 1935. [8] De forma muito concreta está abordada a relação entre eu e mundo, também como possibilidade de reflexão para as pessoas jovens, em que essa relação vai se formando e delineando como destino individual no vínculo com a realidade dos outros e do mundo. E não deixa de chamar a atenção que a pergunta projeta a imagem do que será em então 11 anos – em 1935, em que, olhando retrospectivamente, o mundo em que os jovens aos quais as questões são colocadas se encontrará em absoluto caos social e prestes a entrar numa guerra que deixará marcas de uma desumanização e destruição sem precedentes.
Para finalizar estas breves considerações sobre os "Pensamentos Guia" menciono os primeiros pensamentos, em que Rudolf Steiner se refere ao impulso primeiro que leva à Antroposofia: um desejo de conhecer o ser humano e o mundo que conduz a perguntas sentidas com a intensidade existencial da sensação de fome e sede. “Antroposofia é um caminho de conhecimento que quer conduzir o espiritual no ser humano ao espiritual no mundo.” [9] Um desejo por conhecimento que emerge como necessidade do coração e que leva a um caminho que vai do saber do humano ao saber do mundo. [10] Desejo e conhecimento estão colocados como os elementos centrais, em sua reciprocidade inerente, sentidos no coração. Seminalmente, já nesta primeira “máxima”, subjazem os elementos constituintes da vida humana, que possibilitam um vínculo transformador com a realidade do ser humano e do mundo.
Notas e referências bibliográficas
[1] STEINER, Rudolf. Anthroposophische Leitsätze. GA 26. 12. ed. Basel: Rudolf Steiner Verlag, 2020, p. 11. „[...] Ratschläge enthalten über die Richtung, welche die Vorträge und Besprechungen in den einzelnen Gruppen der Gesellschaft durch die führenden Mitglieder nehmen können. Es wird dabei nur an eine Anregung gedacht, die vom Goetheanum aus der gesamten Gesellschaft gegeben werden möchte.“ Tradução da autora.
[2] STEINER, Rudolf. Anthroposophische Leitsätze. GA 26. 12. ed. Basel: Rudolf Steiner Verlag, 2020, p. 11. „[...] Ratschläge enthalten über die Richtung, welche die Vorträge und Besprechungen in den einzelnen Gruppen der Gesellschaft durch die führenden Mitglieder nehmen können. Es wird dabei nur an eine Anregung gedacht, die vom Goetheanum aus der gesamten Gesellschaft gegeben werden möchte.“ Tradução da autora.
[3] UNGER, Carl. Aus der Sprache der Bewusstseinsseele. Stuttgart: Verlag Freies Geistesleben, 2007, p. 31 e p 619. Carl Unger (1878-1929), um pioneiro do movimento antroposófico, aluno e colaborador de Rudolf Steiner, escreveu artigos (publicados em forma de livro após sua morte) em que desenvolve e aprofunda o trabalho com os “Pensamentos Guia”. Ele mesmo escreve em frases sucintas pensamentos centrais que desenvolve a partir da leitura dos textos de Steiner. O primeiro aforismo diz: “Todo conhecimento transforma aquele que conhece” (“Jede Erkenntnis wandelt den Erkennenden”), e a última: “Todo conhecimento transforma aquilo que é conhecido” (“Jede Erkenntnis wandelt das Erkannte.”).
[4] STEINER, Rudolf. Leitsätze. Leading thoughts. Zweisprachige Ausgabe/Bilingual edition. Ita Wegman Institut/SteinerBooks/Univers Enciclopedic, 2024.
[5] STEINER, Rudolf. Leitsätze. Leading thoughts. Zweisprachige Ausgabe/Bilingual edition. Ita Wegman Institut/SteinerBooks/Univers Enciclopedic, 2024, p. 42.
[6] STEINER, Rudolf. Leitsätze. Leading thoughts. Zweisprachige Ausgabe/Bilingual edition. Ita Wegman Institut/SteinerBooks/Univers Enciclopedic, 2024, p. 43
[7] STEINER, Rudolf. Leitsätze. Leading thoughts. Zweisprachige Ausgabe/Bilingual edition. Ita Wegman Institut/SteinerBooks/Univers Enciclopedic, 2024, p. 44. „Das Schicksal des Menschen wird ihm von der Welt bereitet, die ihm seine Sinne offenbaren. Findet er die eigene Wirksamkeit in dem Schicksalswalten, so steigt ihm sein Selbst wesenhaft nicht nur aus dem eigenen Innern, sondern es steigt ihm aus der Sinneswelt auf. Kann man auch nur leise empfinden, wie im Selbst die Welt als Geistiges erscheint und wie in der Sinneswelt das Selbst sich als wirksam erweist, so ist man schon im sicheren Verstehen der Anthroposophie darinnen.“ Tradução da autora.
[8] STEINER, Rudolf. Was in der Anthroposophischen Gesellschaft vorgeht. Nachrichten für deren Mitglieder. Jahrgang 1924, 13. Juli 1924, p. 106.
[9] STEINER, Rudolf. Anthroposophische Leitsätze. Op. cit., p. 14. «Anthroposophie ist ein Erkenntnisweg, der das Geistige im Menschenwesen zum Geistigen im Weltenall führen möchte.» Tradução da autora.
[10] STEINER, Rudolf. Anthroposophische Leitsätze. Op. cit., p. 14. «Anthroposophie ist ein Erkenntnisweg, der das Geistige im Menschenwesen zum Geistigen im Weltenall führen möchte.» Tradução da autora.
Constanza Kaliks nasceu em 1967 no Chile e viveu principalmente no Brasil. Completou seus estudos de matemática em São Paulo e foi professora de matemática na Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo, por 19 anos. Lá, ela também foi professora na formação de professores Waldorf. Tem doutorado em educação com uma tese sobre Nicolau de Cuse. Faz parte do conselho do Goetheanum desde 2015. É co-líder da Seção Pedagógica e da Seção de Antroposofia Geral no Goetheanum.