A QUEM SERVE O NOSSO DINHEIRO? - DESAFIOS DA COMUNIDADE MICAELITA DIANTE DA PRÓXIMA ENCARNAÇÃO DE ÁRIMÃ
por Joan Antoni Melé
por Joan Antoni Melé
Nos meses de novembro e dezembro de 1919, Rudolf Steiner falou, em oito ocasiões, sobre a próxima encarnação de Árimã e, depois, nunca mais voltou a falar sobre este assunto – pelo menos publicamente. À primeira vista, pode parecer estranho que, tratando-se de um tema de tanta importância, ele não tenha aprofundado mais o assunto, nem dado muitas orientações sobre como enfrentar esse evento.
Se analisarmos detalhadamente o intenso trabalho realizado por Rudolf Steiner durante os anos em que se desenvolveu a Primeira Guerra Mundial, mais especialmente durante o ano de 1919, uma vez terminada a guerra, perceberemos que em todas as suas conferências e em todas as suas obras, ele já nos mostrava claramente qual era o caminho para enfrentar e equilibrar as consequências que a prevista e inevitável encarnação de Árimã acarretaria.
Por outro lado, conhecendo os critérios rigorosos de Rudolf Steiner em relação ao respeito pela liberdade, a decisão de não falar mais sobre esse tema de forma direta foi totalmente coerente com os seus princípios e a sua forma de agir ao longo do seu caminho como “mestre espiritual” ou como “grande iniciado”. Em algumas orientações dadas aos antropósofos que realizavam palestras sobre antroposofia, ele insistiu seriamente que eles deveriam ter muito cuidado com a forma de comunicar seus conhecimentos, de modo que nunca chegassem a condicionar a liberdade de outras pessoas.
Em sua obra fundamental, A filosofia da liberdade, ele nos descreve como somente um ato realizado por “amor à ideia” é um ato realmente livre. Se ele tivesse insistido nos perigos e ameaças, é evidente que teria despertado mais medos e receios do que intuições morais. Por isso, durante o ano de 1919, ele divulgou e colocou em prática todas as ideias sobre a Trimembração Social, que constituem um modelo claro e concreto de como enfrentar as ameaças da encarnação de Árimã. Se agruparmos todas as indicações que Rudolf Steiner nos dá, de forma esparsa, nas oito conferências mencionadas, veremos que elas podem ser condensadas em três temas fundamentais, que são precisamente aqueles desenvolvidos de forma detalhada no programa da Trimembração Social.
O primeiro deles é promover e proteger o desenvolvimento de uma vida espiritual livre, frente aos modelos científicos baseados em um materialismo reducionista, e diante da ingerência inaceitável das ideologias políticas nos planos de educação.
O segundo é despertar um verdadeiro interesse em todos os seres humanos, como base de partida para equilibrar as tendências sociais e antissociais que coexistem em todos os seres humanos, e que Árimã tenta potencializar, agitando todas as emoções, para criar conflitos em todos os âmbitos sociais e fragmentar as pessoas em grupos que se atacam uns aos outros.
O terceiro é desenvolver uma economia orgânica, viva, em oposição ao modelo desenvolvido desde o século XIX, no qual o sistema financeiro, os bancos e os fundos de investimento transformaram os governantes em marionetes e os cidadãos em escravos da produção e do consumo.
Rudolf Steiner é contundente neste terceiro aspecto: “[...] A humanidade só poderá fazer uso correto do que entra no mundo por meio de Árimã, se agora for capaz de se adaptar da maneira correta ao que ele já está enviando à Terra, a partir dos mundos suprassensíveis, com o objetivo de controlar os assuntos financeiros sem ser notado. Isso não deve acontecer, Árimã não deve controlar os assuntos financeiros e a economia da Terra sem ser notado. Temos que nos familiarizar profundamente com suas qualidades particulares e saber o que ele faz. Devemos ser capazes de nos opor a ele com plena consciência”. Mas o difícil quando falamos sobre o tema econômico, ou seja, sobre o dinheiro, é não cair em generalizações abstratas falando sobre o poder dos bancos, ou das multinacionais, ou das sociedades secretas que movem os fios, embora tudo isso seja verdade. Aqui, a questão fundamental é individual: como Árimã age em mim? Quem inspira minhas decisões quando uso o dinheiro? Ou, dito de outra forma: a quem serve o meu dinheiro?
Um dos problemas que encontramos quando discutimos economia, um dos motivos pelo qual a Trimembração Social não foi compreendida em sua plenitude e, portanto, não foi colocada em prática, tem sido a interpretação parcial ou errônea da palavra fraternidade. De forma muito simples e conveniente, ela foi reduzida à seguinte afirmação: “os que têm mais devem pagar mais”. Embora essa afirmação seja parcialmente verdadeira, ela não servirá de nada se simplesmente limitarmos nosso entendimento a este conceito prévio e não aprofundarmos mais nesse tema. É preciso entender a ideia da Trimembração Social como o fundamento de um organismo social, um organismo vivo, no qual existem três órgãos autônomos que devem coexistir em harmonia, apoiando-se livremente uns aos outros porque dependem uns dos outros. É necessário compreendermos que a vida espiritual livre depende exclusivamente de uma economia saudável, na qual o dinheiro não seja sequestrado por Árimã, mas que flua abundantemente para o órgão que cuida do pleno desenvolvimento do Ser Humano, para que ele possa se tornar o Ser que um dia os Deuses pensaram para ele.
Diante da incompreensão e, portanto, da primeira tentativa frustrada de levar adiante o programa da Trimembração Social na Alemanha, Rudolf Steiner não só não se desanimou, mas, usando as palavras de Goethe, fez um “processo de intensificação e metamorfose” de todo o programa da Trimembração Social, levando-o a uma culminação no Congresso de Natal.
O conceito de liberdade na vida espiritual, no Congresso de Natal, é elevado e transformado na proposta de veracidade e autenticidade. Sei que pode parecer uma contradição, mas tenho certeza de que não é. Rudolf Steiner insiste, às vezes de forma contundente, que devemos ser autênticos diante do mundo com a antroposofia, e não tentar disfarçá-la para agradar ao mundo, ou para sermos aceitos pelo mundo. E Rudolf Steiner diz: “[...] O mundo não nos quer [...]. Se nos perguntarmos repetidamente: o que temos de fazer da nossa parte diante deste ou aquele círculo no mundo que, hoje, não nos quer? Como devemos nos comportar neste ou naquele ambiente para que possamos ser aceitos completamente? Então, com toda a certeza, não seremos completamente aceitos. Só seremos aceitos se, a cada instante, com nossas ações, nos sentirmos responsáveis perante o mundo espiritual, quando sabemos: o mundo espiritual quer alcançar algo com a humanidade no momento presente do desenvolvimento histórico, quer isso nos mais diversos âmbitos da vida, e está em nossas mãos seguir clara e verdadeiramente os impulsos do mundo espiritual.”
O conceito de igualdade na vida social, no Congresso de Natal, é elevado e transformado em comunidade. O objetivo do Congresso de Natal é a fundação da Sociedade Antroposófica Universal como uma comunidade de seres humanos, vivos e falecidos, em uma nova aliança com o mundo espiritual para que, por meio dessa comunidade, possam desenvolver-se no mundo os fins previstos pelos Deuses para o ser humano. Uma comunidade além de simpatias e antipatias, uma comunidade de micaelitas que possam ajudar a enfrentar conscientemente e com recursos a mencionada encarnação de Árimã.
Nas conferências sobre o Carma, Rudolf Steiner nos fala sobre o Carma desta Sociedade Antroposófica, sobre como estivemos com Micael na esfera solar durante vários séculos preparando este encontro e essa comunidade aqui na Terra, e então, por meio do culto suprassensível do século XIX, nossa alma foi impregnada com este desejo de nos reencontrarmos aqui na Terra entre nós, e com a Antroposofia. Por isso, quando aqui na Terra encontramos a Antroposofia e nos encontramos entre nós, surge naturalmente uma alegria, porque esse anseio pré-natal se cumpriu. Mas também surgem os conflitos cármicos de encarnações passadas, que Àrimã se encarrega de potencializar, sem fazer muito esforço.
Por isso Rudolf Steiner, nas Cartas aos membros (quase seu testamento final), nos recomenda ir às reuniões dos Ramos para encontrar os outros membros da comunidade, independentemente do conhecimento que esse encontro possa nos trazer. Vamos aos Ramos para encontrar os outros seres humanos membros da mesma comunidade micaelita, vamos para cultivar o interesse pelo outro ser humano, e se houver dificuldades por causa de conflitos passados, ou verdadeiras antipatias, que seja este o motivo pelo qual devemos frequentar os Ramos: para resolver estes conflitos do passado. É assim que se combate Árimã.
Por último, o conceito de fraternidade se eleva e se transforma no de "inegoísmo"; uma palavra que não existe no dicionário, mas que devemos criar. Normalmente é traduzido como altruísmo, mas acredito que “inegoísmo” é algo superior, significando que em nossas decisões, especialmente com o dinheiro e a economia, agimos com total ausência de ego, para permitir que o verdadeiro Eu atue em nós. “Inegoísmo” significa “não eu, mas Cristo em mim”; e é contra isso que Árimã concentra todas as suas forças adversas, especialmente na Sociedade Antroposófica.
Após essas considerações, gostaria de convidar os membros da Sociedade Antroposófica a refletir e reconsiderar o conceito de “contribuição econômica anual”, que estes contribuem, em forma de doação, para a manutenção e o desenvolvimento dos objetivos e compromissos livres que foram estabelecidos no Congresso de Natal, quando foi fundada a Sociedade Antroposófica, e que incluem a manutenção do Goetheanum.
Para fazermos uma reflexão autêntica e verdadeira, convido-os a fazer uma pequena análise de sua contabilidade, ou seja, a aprofundar um pouco mais a questão que dá título a este artigo: a quem serve meu dinheiro? E se, armados de coragem, analisarmos nossa renda, ou nosso patrimônio, e com que gastamos nosso dinheiro: quanto dedicamos a restaurantes, bebidas, diversões, viagens etc.; e compararmos com o que destinamos para manter a Sociedade Antroposófica no Brasil e o Goetheanum com seus objetivos, talvez em alguns surja um sentimento de vergonha.
Sei que alguns de vocês podem argumentar que não concordam com o comportamento ou com as decisões de alguns membros das diversas diretorias da Sociedade, mas se esse fosse um argumento válido, Rudolf Steiner nunca teria se comprometido conosco. O compromisso de Rudolf Steiner foi incondicional, inabalável e eterno, e com isso ele nos mostrou o novo caminho da iniciação, já exposto em A filosofia da liberdade: o caminho do amor. E sim, claro que há coisas que estão erradas, por isso devemos dedicar mais dinheiro e mais esforços para que nossa Sociedade possa se desenvolver de forma saudável neste mundo dominado por Árimã.
Não se trata da quantia que contribuímos em termos absolutos, mas em termos relativos: que parte dos meus recursos quero dedicar para apoiar os objetivos do Congresso de Natal? Até que ponto eu vinculo minha vontade, ou seja, meu dinheiro, a Rudolf Steiner e ao seu sacrifício?
Em definitiva: a quem eu quero que o meu dinheiro sirva?
Joan Antoni Melé é presidente da Fundación Dinero y Conciencia, palestrante, consultor e escritor, sendo autor dos livros Dinheiro e Consciência e Seres Humanos ou Marionetes, entre outros. Inspirado pela antroposofía, seu propósito tem sido sempre trabalhar o autoconhecimento, buscar o sentido da vida, e mostrar como o uso do dinheiro usado com conciencia tem o poder para transformar o mundo.