O MISTÉRIO DE MICAEL E RAFAEL E SUA RELAÇÃO COM O CRISTO
por Marcos Curi
por Marcos Curi
Na consciência diurna de vigília o ser humano vive apenas no mundo físico e nisto está presente, em sua vivência, a terceira hierarquia. Na consciência onírica, que o ser humano vive entre morte e nascimento, participa a segunda hierarquia que se revela pela consciência imaginativa. Já na consciência do sono sem sonhos o ser humano vivencia o próprio ser como permeado pelos resultados de vidas passadas e, aqui, a primeira hierarquia está presente e se revela pela consciência inspirativa.
Hoje em dia, o ser humano tem a sensação de que as ideias são formadas nele por meio da atividade de sua alma. Ele tem o sentimento de ser ele o formador das ideias, de fora lhe viriam apenas as percepções. Já o ser humano de tempos passados não tinha a sensação de que o conteúdo das ideias fosse produzido por ele, mas sim como algo recebido do mundo suprassensível como dádiva.
Hoje em dia, na alma da consciência, os pensamentos têm sua sede no corpo etérico humano, contudo, eles se impregnaram no corpo físico. Assim esses pensamentos se tornaram mortos perante essa consciência comum. Já nos tempos passados não eram vagos como hoje; os pensamentos eram simplesmente viventes, eram providos de alma e perpassados pelo espírito. Isto significa então que o ser humano não pensava pensamentos e sim, que ele vivenciava a percepção de entidades espirituais concretas.
O ser humano é espírito e seu mundo é o mundo dos espíritos. Um segundo estágio é aquele onde o pensamento não é mais vivenciado pelo espírito e sim pelo corpo astral, perde-se a espiritualidade imediata e atua agora a contemplação anímica. O pensamental surge como algo vivo permeado pela alma. Nestes dois estágios está excluído a possibilidade do ser humano chegar realmente a um impulso interior próprio do agir. Uma terceira época de desenvolvimento da consciência trouxe os pensamentos, como pensamentos vivos, à consciência do corpo etérico. E foi aí que surgiu pela primeira vez o anseio por liberdade do próprio agir, mas ainda não era a verdadeira liberdade, mas um anseio por ela.
Apenas quando os pensamentos assumiram o seu cunho no corpo físico e a consciência se estendeu a este cunho, é que surgiu a possibilidade de liberdade. Esse é o estado que se apresenta no século XV após Cristo: quando os pensamentos se prenderam ao corpo físico, desprendendo-se de seu conteúdo direto o espírito, a alma e a vida; e a sombra abstrata, presa ao corpo, ficou só.
A missão de Micael é levar forças aos corpos etéricos humanos, por meio das quais as sombras dos pensamentos novamente recebam vida; e então, almas e espíritos dos mundos suprassensíveis se inclinam aos pensamentos reavivados; o ser humano liberto pode viver com eles, assim como com eles vivia o homem que era apenas uma reprodução física de sua atuação.
Pois compreender Micael significa, hoje, encontrar o caminho para o Logos vivido pelo Cristo na Terra entre os seres humanos. Quem acolher em seus sentimentos a contemplação interior, da essência e dos atos de Micael, apoiado numa sensibilidade profunda, compreenderá corretamente como deve ser tomado por nós um mundo que não é de essência divina, nem manifestação, nem atuação, mas a obra dos deuses. Desde o Mistério do Gólgota, Cristo é acessível à alma humana, e a relação entre ambos não precisa ficar indefinida, dominada por um misticismo ou um sentimento obscuro; pode-se tornar uma relação completamente concreta, vivenciável, clara e profundamente humana. A vida poderá ser permeada pelo elemento crístico de modo que em Cristo seja sentido o Ser que dá à alma humana a visão de seu próprio caráter suprassensorial.
Numa de suas palestras Rudolf Steiner expõe que no coração humano acontece continuamente um processo de eterização do sangue; então este, de forma eterizada, ascende do coração à cabeça e a partir dali se liga ao mundo etérico (o macrocosmo) que nos rodeia. O aspecto mais importante desta palestra, todavia, é apontar o fato decisivo de que, desde o Mistério do Gólgota ao lado do fluxo de sangue eterizado humano ou microcósmico, corre em todo ser humano um segundo fluxo macrocósmico na mesma direção, ou seja, do coração à cabeça – um fluxo do sangue eterizado do Cristo. Porém quando nós começarmos a assimilar ativamente as comunicações da ciência espiritual que estimulam a espiritualização do pensar, principalmente aquelas que apontam para o Mistério do Gólgota, mais cedo ou mais tarde ocorrerá o seguinte: quando a espiritualização do pensar humano já tiver progredido o suficiente, aos poucos acontecerá a união dos dois fluxos de sangues eterizados em sua região cardíaca, abrindo-lhe a faculdade da nova clarividência de modo a permitir-lhe contemplar o Cristo no mundo etérico.
Esse processo de formação de um espaço interior do coração lança uma luz, de um ponto de vista totalmente diverso, sobre o significado extraordinário do desenvolvimento do pensar no caminho de autoeducação da antroposofia; pois neste caminho o pensar não apenas tem importância no campo cognitivo, mas é também um instrumento fundamental de nossa época, para erigir com consciência um domicílio para Micael e o Cristo no coração humano. O coração passa a ser um novo órgão de percepção para Micael-Cristo.
Para entender esse caminho descrito precisamos compreender a verdadeira essência desse mistério de mercúrio ou mistério do coração; então este, de forma eterizada, ascende do coração à cabeça e a partir dali se liga ao mundo etérico. A sabedoria mercurial tem uma coisa em comum: revela como a dinâmica mercurial levam as forças da região superior, a vida cognitiva extracorpórea, para o âmbito de atuação da região inferior, os reinos da vida inconsciente do metabolismo, e vice-versa. Por isso, essa dinâmica de atuação é idêntica ao drama que se desenrola no limiar que impera entre o mundo dos sentidos e o mundo suprassensível. Médicos e terapeutas em tempos atuais devem estudar através da ciência espiritual a fisiologia do nosso processo cardiopulmonar, que guarda todo esse mistério.
Nessa fisiologia podemos entender como o ser humano superior com toda a luz recebida pelos órgãos dos sentidos envia suas informações ao átrio direito e tudo aquilo que o ser humano inferior produz através da digestão, substanciando a entidade humana, também irá se encontrar no átrio direito. Vemos aqui ainda como o coração é um órgão altamente neurossensorial, ao reconhecer várias mudanças na bioquímica sanguínea. Rudolf Steiner descreve que o coração através da organização calórica, do éter de calor, domina todos os outros éteres: o luminoso, o químico e o da vida; e então é capaz de degustar, tatear, ver e ouvir toda a substancialidade da organização humana. É esse coração que, através do calor, é capaz de iluminar (éter de luz), ressoar (éter químico) e sentir a vida (éter de vida) em toda a corporalidade humana. Além dessas duas vias, a primeira do sangue arterial e a segunda do sangue venoso, existe ainda uma terceira via que nos vincula aos níveis de consciência onde o sangue arterial nos traz a consciência e o venoso nos entorpece: esta via é a respiratória.
Quando entendermos o nosso coração, encontraremos nele todos os segredos do universo. A fisiologia oculta do coração guarda ainda dois grandes mistérios nesse processo cardiorrespiratório: o primeiro que se revela no processo da oxigenação do sangue arterial, por onde todas as imagens arquetípicas do macrocosmo e toda a luz eterna do cosmo se revelam — aqui a sabedoria consciente da humanidade encontra-se nos mistérios do espaço, nos mistérios das alturas —; e existe ainda um segundo segredo, aquele do fluxo da carboxidação, em que o ser humano agora devolve ao mundo uma nova luz química viva transformada e humanizada — onde também existem grandes revelações, contudo apresentadas de uma maneira totalmente inconsciente: neste segundo fluxo revela-se o grande mistério que está vinculado às forças das profundezas, forças estas que guardam os segredos dos mistérios do tempo.
O bastão de Mercúrio nos mistérios antigos era o símbolo que representava o encontro de dois seres humanos, que se reconheciam mutuamente e se reuniam em espírito em total liberdade no entorno deste bastão da verdade. Nesse processo, uma parte da organização do Eu humano sai de uma das pessoas e submerge na outra, e depois volta ao seu próprio corpo. Nessa atividade do Eu ligada a duas almas, estas são representadas nas duas serpentes que se erguem entrelaçadas no bastão da verdade. Aqui Mercur-Raphael se torna o guia dos seres humanos livres que, por meio da vivência do outro na própria alma, se permeiam do verdadeiro amor; do verdadeiro amor do Cristo.
Assim os seres humanos encontram-se uns aos outros no verdadeiro sentido do Cristo: é Ele quem faz o eu humano despertar no contato com o outro eu, fazendo com que não consanguíneos sejam irmãos e irmãs. O nascimento desta fraternidade está intimamente relacionado com a capacidade da humanidade de desenvolver um Eu abnegado ou altruísta.
No caminho de desenvolvimento do médico, Rudolf Steiner relata que a vontade de curar que reside na alma do médico deve se encontrar com a vontade de ser curado do paciente. No ambiente sacral da consulta o eu do médico se encontra com o eu do paciente, ao mesmo tempo o anjo do médico está defronte ao anjo do paciente. Neste espaço anímico, nesta taça sacramental, neste silêncio divino do encontro, Rafael atua sendo a mão curadora do Cristo. R. Steiner ainda relata que no verdadeiro coração rafaélico-mercurial devemos desenvolver as seguintes palavras micaélicas: “Se eu aquecer o meu pensar com o calor da minha vontade, eu encontro a Liberdade; e se eu iluminar a minha vontade com a luz do meu pensar, eu encontro o Amor”. Esse é o caminho para desenvolvermos um Eu abnegado, altruísta. Sem essas verdadeiras qualidades mercuriais jamais alcançaremos a fraternidade crística.
Na Terra, na virada dos tempos, a alma do Jesus natânico viveu em total harmonia com o Eu de Zaratustra. Como a alma natânica nunca havia habitado na Terra, e aquela era sua primeira encarnação terrestre, o Eu de Zaratustra lhe apresentou gradativamente as perversões terrestres. Estas perversões ele só conhecia em sua vivência extra-humana, e não em um corpo terrestre.
São elas, as mesmas perversões, que em nossos tempos micaélicos se revelam como: a dúvida no Pensar, o ódio no Sentir e o medo no Querer. Quando a alma natânica pensava, o Eu de Zaratustra atuava na sua vontade; e quando a alma natânica agia, o Eu de Zaratustra atuava pelo seu pensar. Isso preparou o coração desta alma para ser o receptáculo de toda a substância mercurial da consciência crística; ser o receptáculo de todo o Verbo Cósmico.
Depois que o Eu de Zaratustra se afastou das corporalidades do Jesus natânico a pessoa que se apresentou diante de João Batista, no batismo do Jordão, não era mais um alto iniciado ou um poderoso adepto dos mistérios, mas sim um simples e pouco sofisticado homem, sendo com certeza o ser humano ideal, que ao mesmo tempo estava cheio da infinita sabedoria terrena dada por Zaratustra e da "interioridade mais íntima" associada às forças da compaixão e do amor, que essa alma natânica havia trazido para a Terra de seu estado paradisíaco.
“O futuro portador do Cristo realmente era um verdadeiro homem, não um adepto ou um iniciado”.¹ R. Steiner in Prokoffief, Sergei O. - The esoteric path through the nineteen class lessons
É com essa imagem da alma natânica do futuro portador do Cristo, com esse verdadeiro ser humano que devemos nos relacionar. A alma natânica e seu coração representam esse cálice imaginativo onde a graça do mundo espiritual acontece; assim como aconteceu no Pentecoste com os apóstolos. Os apóstolos tiveram a sensação de estarem despertando, parecendo pessoas que até aquele momento estiveram durante muito tempo num estado de consciência fora do “comum”. Era um despertar de estado de sono profundo, depois repleto de sonhos e, finalmente, acordado. Um despertar micaélico para a verdadeira vivência do Cristo.
Neste despertar sentiram como que vindo do cosmo descesse sobre eles o que podemos denominar a substância mercurial do amor cósmico. Eles sentiram-se fecundados do alto por essa graça, como que despertados da vida onírica, como que ressuscitados por tudo o que permeia e aquece o universo como força original do amor. Foi como se esta força original do amor tivesse mergulhado na alma de cada um. E eles causaram assombro às pessoas que tiveram oportunidade de observá-los e vê-los e, principalmente, pela maneira como falavam após esse despertar.
Essa transformação levou-os a um novo estado de espírito, a uma disposição anímica completamente nova, tendo perdido todo o seu medo de vida limitada e egoísta, tendo recebido um coração rafaélico infinitamente generoso e, no íntimo, uma tolerância infinita e uma profunda compreensão micaélica para tudo que é humano na Terra. Naquele momento de transformação surgiu diante dos olhos anímicos dos apóstolos a verdadeira compreensão do que havia acontecido no mistério do Gólgota.
Esse novo coração rafaélico-mercurial-micaélico foi o berço do nascimento das comunidades cristãs, daquilo que seria o germe da futura comunidade crística. Isto é um problema a ser por nós, antropósofos, enfrentado; uma tarefa a ser desenvolvida. Rudolf Steiner nos deu um caminho micaélico para entendermos essa iniciação, devemos desenvolver a verdadeira atividade criadora do conhecimento para vencermos o fantasma do nosso Pensar, assim como desenvolver o verdadeiro fogo (entusiasmo) pelo conhecimento para combatermos a lassidão do nosso Sentir e, por fim, a verdadeira coragem pelo conhecimento para anularmos o monstro que nos assola em nossa vontade. Estes são os passos para transformarmos nossos corações no cálice mercurial.
A Dra Ita Wegman dizia que a adversidade que entrou no movimento antroposófico foi causada pela dificuldade dos antropósofos em trabalhar essa substância mercurial crística deixada por Rudolf Steiner nos mantras da Primeira Classe e na Pedra Fundamental. Substância essa que ajudaria a desenvolver o verdadeiro coração cristico-rafaélico-micaélico.
Esse caminho de desenvolvimento deveria transformar o nosso coração em um novo órgão de percepção e assim compreenderíamos as palavras micaélicas que Rudolf Steiner nos legou, assim como as palavras sagradas que Paulo de Tarso nos deixou após o evento de Damasco:
“É verdade que ele pensa com a
cabeça, mas o coração sente a claridade
e a escuridão do pensar.”
Rudolf Steiner
“Não eu, mas o Cristo em mim”.
Paulo – Gálatas 2:20
Esta é a verdadeira essência desse Mistério.
Notas explicativas:
¹ Rudolf Steiner citado por PROKOFFIEF, Sergei O. The esoteric path through the nineteen class lessons.
Marcos Curi é avô do Pedro, médico antroposófico, coordenador da Seção Médica no Brasil e membro da coordenação da Escola Superior para a Ciência do Espírito da Sociedade Antroposófica no Brasil.